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REPRODUÇÃO/TV GLOBO e RECORD
Naiara Azevedo e Ana Hickmann denunciaram publicamente seus casos de violência patrimonial
O roteiro de violências contra as mulheres é bastante conhecido e recorrente. Tudo começa com um relacionamento amoroso, que evolui para uma união estável e vai abrindo as portas para que os sentimentos e as emoções turvem a percepção do que está acontecendo. Até que a situação chega a um estágio em que não se reconhece mais a pessoa com a qual se escolheu viver, que vira uma fonte de agressões e violências. Neste ponto, a relação já não se sustenta, mas todo o investimento emocional feito dificulta uma tomada de decisão e uma reação ao sofrimento imposto.
Nas últimas semanas, vimos dois casos de pessoas famosas, o da cantora Naiara Azevedo e o da apresentadora Ana Hickmann, cumprindo exatamente esse mesmo roteiro.
Por excesso de confiança, a atração pelo agressor transforma a relação em uma prisão na qual as mulheres se tornam vítimas dos próprios maridos e/ou companheiros. O machismo estrutural ainda nos contamina, e a primeira reação da maioria é desacreditar a vítima. Há muitos e muitos casos assim Brasil afora.
De acordo com a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, três a cada dez brasileiras já foram vítimas de violência doméstica. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informa que, só de janeiro a julho de 2023, já foram concedidas 254.440 medidas protetivas.
E a 18ª edição do Dossiê Mulher, divulgado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, mostra que mais da metade dos crimes ocorreu dentro de casa, com 67,6% dos autores sendo conhecidos da vítima. Além disso, o dossiê aponta que a violência psicológica é a mais comum.
Nos casos de Ana Hickmann e Naiara Azevedo, fica clara também a ocorrência de violência patrimonial. Ambas contam que descobriram que os recursos que ganhavam em suas carreiras estavam sendo manipulados pelos agressores sem o consentimento delas.
Ana Hickmann descobriu dívidas de milhões de reais feitas pelo marido corroendo o patrimônio acumulado. Já Naiara Azevedo deu entrevista revelando que, dos milhões que recebia, tinha apenas R$ 1 mil "autorizados" pelo marido, que passou imóveis e outros bens para o próprio nome e de familiares, mesmo o dinheiro tendo origem no trabalho da cantora.
Muito embora incluída no rol do artigo 7º da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), esse tipo de violência ainda é pouco conhecido e falado, justamente por se associar à violência doméstica perpetrada contra a mulher na forma de agressões físicas.
Pela lei, a violência patrimonial é entendida como “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. É a caracterização do que ocorreu com Naiara Azevedo e Ana Hickmann.
A violência patrimonial exige medidas de urgência para interromper o ciclo de agressões, como fazer um Boletim de Ocorrência, seguido de medidas cautelares na Justiça de sequestro, arrolamento e reserva de bens, por meio das quais deve ser solicitado o bloqueio de contas. Tais ações podem evitar eventual desvio fraudulento do patrimônio e recolocar o controle do patrimônio nas mãos de quem de fato o conquistou.
Importante destacar que, ainda que os bens estejam em nome do marido, ou mesmo em nome de terceiros, como o da sogra de Naiara Azevedo, tratam-se de bens adquiridos na constância do casamento e que têm a cantora como a provedora do dinheiro. É ela, portanto, a fonte dos recursos usados na construção do patrimônio do casal.
No caso da cantora, vale acrescentar que a procuração outorgada para a sogra, estando já falecida, perde os efeitos e, portanto, o instrumento não poderia mais ser utilizado para engendrar os negócios para os quais tinha poderes conferidos para realizar.
Um dos versos de sucesso cantados por Naiara Azevedo diz "eu já vi tudo que eu tinha que ver aqui, que decepção", como se ela estivesse prevendo o que seria de seu relacionamento. A vida real, contudo, trouxe mais que decepção, trouxe violência e práticas tipificadas como crime.
Resta às duas vítimas conseguirem se recompor emocionalmente e psicologicamente para superar as dificuldades e frustrações amorosas. Mas isso só será possível se agirem para estancar as violências --entre elas, a patrimonial, o que parece estar sendo feito por ambas. É o que pode (e deve!) ser feito por todas as mulheres que passam por essa situação.
RITA DE CÁSSIA CURVO LEITE (rccleite@pucsp.br) é advogada e professora da PUC-SP há mais de 20 anos, mestre em Direito Civil e doutora em Direitos Difusos pela mesma universidade, palestrante e autora de livros com ênfase aos direitos da personalidade.
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