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VALE O ESCRITO

Série secreta da Globo expõe máfia brasileira em enredo de novela sangrenta

Reprodução/Globo

Imagem do velório do bicheiro Maninho, assassinado em 2004, na série documental Vale o Escrito, do Globoplay

Imagem do velório do bicheiro Maninho, assassinado em 2004, na série documental Vale o Escrito, do Globoplay

DANIEL CASTRO

dcastro@noticiasdatv.com

Publicado em 13/11/2023 - 10h05

Lançada no último dia 1º sem nenhum alarde pela Globo, a série documental Vale o Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho é uma pérola do streaming. Ao narrar a história recente da contravenção no Rio de Janeiro e suas conexões com o crime organizado, a produção do Globoplay nos apresenta personagens tão absurdos que parecem ter saído de uma telenovela policial.

O grande mérito da série é justamente reunir depoimentos interessantes e por vezes contundentes de pessoas que logo na introdução Pedro Bial carimba como protagonistas da máfia brasileira. Gente que carrega nas costas acusações gravíssimas, dezenas de assassinatos, atentados e conexões íntimas com a polícia, as milícias e o tráfico de drogas.

Se fosse uma novela, seria uma saga de duas famílias rivais, os Andrade (do patriarca do jogo do bicho Castor de Andrade) e os Garcia (de Waldomiro Garcia, o Miro). Durante décadas, assistiríamos a uma série interminável de assassinatos por vingança e ganância.

Poderíamos até nutrir certa empatia personagens complexos, como o da filha de bicheiro que hoje recebe mesada do suspeito de ter matado seu próprio pai. No núcleo de humor, teríamos o herdeiro da contravenção que idolatra Don Corleone, de O Poderoso Chefão, e diz seguir "os princípios e doutrinas da máfia: o respeito, a lealdade, nunca dedurar".

Globo manteve série em segredo

Vale o Escrito entrega com primor o resultado de longas negociações por entrevistas. Conseguiu bons depoimentos de oito protagonistas dessa história, que também é a do Carnaval mais glamuroso do mundo.

Estão representados nos sete episódios os veteranos, bicheiros assumidos e carismáticos patronos de escolas de samba, e os novos capos --esses se apresentam como empresários bem-sucedidos e sofisticados, não como contraventores, mas são mais violentos que seus antecessores.

Pertencem ao primeiro grupo Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, 81 anos, "o STF [Supremo Tribunal Federal] do jogo e do Carnaval", patrono da Vila Isabel. E José Caruzzo Escafura, 94 anos, o Piruinha, que manda nas pules de boa parte da zona norte e demorou seis meses para aceitar dar entrevista.

No segundo grupo, o dos novos bicheiros, brilha Bernardo Bello. Ele surge em um ambiente doméstico chique, usando roupas de grife, falando articuladamente bem. Parece um executivo. Difícil imaginar que poucos meses antes de falar com a Globo ele foi preso na Colômbia, acusado de mandar matar um concorrente na contravenção carioca (Alcebíades Paes Garcia, o Bid), e que foi investigado por suposto envolvimento com o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2019.

Bello atira (aqui, verbalmente) contra seu maior rival, Rogério Andrade, sobrinho do folclórico Castor de Andrade. Também suspeito na morte de Marielle, Andrade é hoje um dos homens mais temidos do Rio. Contra ele, pesa a suspeita de ter mandado matar o filho e o genro de Castor. Bello cola nele a etiqueta de "senhor do crime".

Foi por causa de Andrade, que se recusou a falar com a produção do documentário, que a Globo o manteve em sigilo durante pouco mais de dois anos. Até dia o 1º, não havia saído uma única linha sobre Vale o Escrito em nenhuma coluna ou publicação especializada. Na véspera do lançamento, apenas cinco jornalistas receberam os dois primeiros episódios.

Por que a Globo foi tão discreta? Uma fonte envolvida com a produção esclarece:

Porque essas pessoas se matam entre si. E porque o Rogério Andrade é muito articulado na Justiça. Poderia tentar censurar a obra se soubesse das acusações que são feitas contra ele."

REPRODUÇÃO/GLOBO

Shanna Garcia dá entrevista para série Vale o Escrito

Shanna Garcia se emociona ao lembrar do pai, Maninho, em Vale o Escrito

A Ruth e Raquel da tragédia

A "dona de casa" Shanna Garcia também é da nova geração de bicheiros, apesar de ter perdido os pontos de apostas que comandava para o ex-cunhado Bernardo Bello. Ela é filha de Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, o "rei do Rio", bicheiro e patrono da Salgueiro, assassinado a tiros de fuzil em 2004, aos 42 anos, ao sair de uma academia pilotando uma moto Kawasaki Ninja, com o filho na garupa --o adolescente Myro Garcia sobreviveu, mas seria eliminado 14 anos depois, em 2017.

Tida como "ousada" e "abusada", Shanna assumiu os negócios do pai, na época representados por 1.500 pontos do bicho e 700 máquinas caça-níqueis. Contra ela, registra-se a acusação nunca comprovada de ter mandado matar Rogério Mesquita, ex-capanga de Maninho, que queria um pedaço dos negócios da família Garcia.

Shanna enfrentou o machismo no jogo do bicho, virando sombra de seu marido, Zé Personal, morto a tiros em 2011 enquanto participava de um ritual num terreiro. Não bastasse ter perdido o pai, o marido e o irmão, foi ela mesma vítima de um atentado que quase lhe tirou a vida em 2019. Sua irmã gêmea, Tamara Garcia, ex-mulher de Bernardo Bello, foi apontada pela polícia como suspeita.

Depois de um ano de negociações, Shanna topou falar com o documentário do núcleo de Pedro Bial, o Conversa.doc. Aparece em pose de atleta, vestida de amazona em um dos haras de sua família. Para deleite de melodramáticos, ela se abre sobre o ódio que sente pela irmã desde as primeiras competições de hipismo, ainda na infância.

"No colégio, nosso apelido era Ruth e Raquel", lembra Shanna, referindo-se às gêmeas de Glória Pires em Mulheres de Areia (1993). 

No final, a trajetória de Shanna reserva ainda um plot twist: ela teria feito um acordo pelo controle de pontos do jogo do bicho e estaria recebendo uma bolada de Rogério Andrade, apontado como principal suspeito do assassinato de Maninho Garcia, seu pai.

Onde entram os Bolsonaros?

Vale o Escrito não inventa nenhuma roda. É um documentário tradicional, uma grande e bem feita reportagem, ricamente alimentada por boas entrevistas, pesquisa e imagens de arquivo.

A série não traz nenhum furo jornalístico, mas traça um quadro completo da relação jogo do bicho com a cultura e o crime no Rio de Janeiro. Mostra como bicheiros como Rogério Andrade e Bernardo Bello montaram os maiores exércitos particulares do Brasil, aliando-se a milicianos e expandindo seus negócios para novas atividades lícitas e ilícitas.

O quinto episódio é "dedicado" ao miliciano mais famoso do país, Adriano da Nóbrega, matador de aluguel da família Garcia, de quem chegou ao status de sócio em operações de máquinas caça-níqueis.

Assassinado em 2020, o criador do Escritório do Crime também foi instrutor de tiro do senador Flávio Bolsonaro, revela no documentário um orgulhoso Fabrício Queiroz, o das rachadinhas. "Aconteceu essa queima de arquivo aí [de Adriano] que não tem nada a ver com a família Bolsonaro", esclarece.

É por declarações, tramas e personagens como esses que Vale o Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho é um documentário que vale muito ser visto.


  • FICHA TÉCNICA
    Vale o Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho
    Globoplay, 2023
    Produção executiva: Erick Brêtas e Mariano Boni
    Supervisão artística: Pedro Bial
    Direção artística: Monica Almeida
    Direção e roteiro: Fellipe Awi, Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti

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