TECNOLOGIA
Divulgação/Netflix
Sadie Sink em cena de Stranger Things; série tinha sido recusada porque não repetia fórmula
Um assunto permeou vários painéis da Rio2C, maior evento de indústria criativa da América Latina, encerrado no domingo (9) no Rio de Janeiro: a "algoritmização", ou o uso de inteligência artificial e de dados para determinar o que vai ser produzido ou cancelado. Estariam os robôs determinando aquilo que vemos hoje na TV, principalmente no streaming?
A pergunta foi feita para a Netflix, pioneira no uso de algoritmo como mecanismo de recomendação de conteúdo para o telespectador. E a resposta é sim, a Netflix usa inteligência artificial e ciência de dados para decidir se vai produzir ou renovar uma série, mas esclarece que a inteligência natural e o instinto humano ainda dão a última palavra.
"A gente tem o privilégio de poder olhar para nossa audiência, e isso nos abastece, a gente aprende muito", explicou Elisabetta Zenatti, vice-presidente de Conteúdo da Netflix no Brasil, em painel da Rio2C.
A tecnologia da Netflix monitora, por exemplo, em que minuto de um episódio as pessoas deixam de assistir, se elas voltam ou se abandonam definitivamente. "A gente então analisa o roteiro e tenta entender isso", ressaltou Elisabetta, para quem "qualidade é uma abordagem focada na audiência". Ou seja, bom é aquilo que o público gosta (e. de preferência, que engaja).
"Mas isso não significa que se aplica uma fórmula matemática", disse a executiva da Netflix. "Os dados que a gente tem acesso podem até ajudar a entender melhor nosso público e como ele se comporta, mas definir o que a gente vai produzir e programar não é uma ciência, mas sim uma arte.".
Isso porque ganchos e reviravoltas que funcionam em uma produção podem não dar certo em outra: "Não existem dados que dizem o que você vai fazer. Você tem que ler o projeto e usar o seu instinto. Somos nós que temos que assumir a responsabilidade de produzir o conteúdo".
"Veja por exemplo Todo Dia a Mesma Noite [2023], Cidade Invisível [2021-2023], Bebê Rena [2024] ou Round 6. Cada um desses títulos recebeu luz verde de um executivo do time criativo da Netflix em algum país. Esse executivo ou executiva viu algo ousado e distinto nisso; acreditou na visão dos criadores e apoiou isso. E olha o que aconteceu", continuou Elisabetta.
Dados não podem fazer isso. Nenhum algoritmo teria previsto que Todo Dia a Mesma Noite, uma obra de ficção sobre uma das maiores tragédias de nosso país [o incêndio na boate Kiss], iria tocar nos corações de tantas pessoas e promover uma reflexão sobre justiça e impunidade ao mesmo tempo. Ou que Round 6, uma série coreana sobre dívidas e desigualdade social, seria a maior série que o mundo já viu.
DIVULGAçÃO/RIO2C
O ator Christian Malheiros e Elisabetta Zenatti em painel da Netflix na Rio2C
O uso de dados e algoritmos, reconhece a Netflix, não é infalível. "Se fosse tão simples quanto ter mais dados ou melhores algoritmos, nós não teríamos fracassos, nem concorrência. Mas temos os dois e somos incentivados a arriscar sempre. Sem o risco, não teríamos inovação e criatividade. Mas todo risco envolve a chance do fracasso, e nós estamos dispostos a investir nisso", finalizou a principal executiva da plataforma no Brasil.
O uso de inteligência artificial na criação artística também foi protagonista do painel A Importância de Encontrar a Verdade Emocional, com Ron Leshem, criador da minissérie israelense Euphoria (2012-2013), que inspirou a produção homônima norte-americana que faz sucesso na HBO. Crítico da IA, Leshem se referiu a ela como "a morte da criatividade" e "a morte da verdade".
A IA vai acabar com a verdade, ninguém mais vai ter prova de nada, e a gente não vai viver sem verdade. Os algoritmos estão matando a criatividade.
De acordo com Leshem, existe na indústria do entretenimento um "algoritmo do drama", um conjunto de regras que são seguidas há muito tempo, muito antes de se falar em inteligência artificial, como a jornada do herói. Essas "receitas" agora estão mais poderosas devido à algoritmização.
Leshem lembrou, no entanto, que os programas mais bem-sucedidos são exatamente aqueles que não seguem nenhuma regra. Como Euphoria, que faz um retrato pessimista da geração Z pelo que Lashem chama de "realismo emocional", reforçado pela maquiagem e pela luz meio alaranjada.
Ele disse ter se inspirado nos filmes Trainspotting - Sem Limites (1996) e Kids (1995). "Eu queria fazer esse realismo emocional, falar sobre o trauma que forma toda nossa vida, o trauma de reprimir nossas identidades". O produtor executivo contou na Rio2C que levou sete anos para emplacar Euphoria: "Todos me disseram 'não'. Queriam que Euphoria fosse Skins [2007-2013], mas eu disse que Skins já existia."
Leshem citou outro exemplo de programa que deu certo porque não seguiu regras ou ordens. De Stranger Things, os estúdios queriam uma série feita sob o ponto de vista do FBI (a polícia federal norte-americana), não de crianças. A Netflix dos algoritmos comprou a ideia original dos criadores e realizou um de seus maiores sucessos.
O cineasta Jorge Furtado, que desde os anos 1990 atua como roteirista e diretor de séries e programas especiais da Globo, apontou para o risco de repetição. Segundo ele, também no Brasil os criadores vivem sendo instigados a seguirem fórmulas que dão certo (como "tiro, sangue e explosão") ou que já foram testadas.
"Estamos vivendo hoje sob a ditadura do algoritmo", protestou na Rio2C. "As pessoas pedem 'eu quero uma coisa tipo Fleabag [2016-2019], uma coisa tipo A Grande Família [2001-2014], tipo Friends [1994-2004], Seinfeld [1989-1998]'. Isso não existe", disse Furtado, citando os criadores dessas obras e a inviabilidade de replicá-las:
Nós temos que acreditar no criador. Ele não serve ao algoritmo, ele serve a outra coisa. O algoritmo está atrasado, a criação está sempre na frente. Alguém cria uma coisa que é fora do parâmetro, não está no algoritmo. Eu tenho a esperança de que a gente já tenha superado esse primeiro momento.
Roteirista de séries como Ó Paí, Ó (2008-2009) Mister Brau (2015-2018) e criador de Tô Nessa, sitcom com Regina Casé que está sendo produzida pela Globo, Furtado elucidou que não se trata de rejeitar o que é sucesso.
"Não vou discutir se é sucesso. A coisa que faz sucesso tem sempre um bom motivo. Não adianta achar que as pessoas gostam, mas é ruim. Não, se elas gostam é porque tem alguma coisa, alguma qualidade ali que faz com que seja sucesso. Mas a gente tem que estar na frente e pensar no que o algoritmo não fez ainda. Senão, a gente vai ficar se repetindo, e as pessoas vão acabar se desinteressando."
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