DENÚNCIA
FOTOS: ADRIANA SPACA/NOTÍCIAS DA TV
O chefe de cozinha Antonio Paulo Mendes da Silva no Habib's: quase dez anos sem carteira assinada
As esfirras que a marca Habib's anuncia na TV a preço de pãozinho francês custam caro para funcionários e franqueados da rede de fast food brasileira. Uma ação protocolada na Justiça de São Paulo neste mês joga luz sobre um lado sombrio da empresa aberta há 32 anos com a missão "mágica" de vender comida o mais barato possível --a esfirra aberta de carne custa atualmente R$ 1,45, mas são comuns promoções a R$ 0,99.
Segundo a denúncia, as lojas Habib's só dão lucro se negarem direitos trabalhistas básicos a boa parte de seus funcionários, se confiscarem os 10% que os clientes dão de gorjeta, se sonegarem impostos e se usarem produtos de qualidade inferior.
A ação tramita desde o último dia 5 na 2ª Vara Empresarial do Fórum Central Cível de São Paulo. Nela, o empresário Marcelo de Souza, 50 anos, que foi franqueado da marca nos últimos três, pede uma indenização de R$ 1,990 milhão por descumprimento de contrato por parte de três empresas que operam a marca Habib's, orgulhosamente intitulada a maior rede de comida rápida árabe do mundo, com 430 lojas.
Decepcionado por ter investido as economias "de uma vida toda" em um restaurante em Caieiras, na Grande São Paulo, Souza afirma na Justiça que o conglomerado criado em 1988 pelo luso-brasileiro Antônio Alberto Saraiva, o Habib (amigo em árabe), se sustenta em "práticas escusas" e em "comportamento predatório". "Constata-se que a obtenção de resultados financeiros favoráveis na operação depende de práticas comerciais duvidosas e questionáveis", diz na ação.
O comerciante relata que investiu R$ 2,6 milhões no restaurante de Caieiras, inaugurado em outubro de 2017. Esperava ter retorno de "32 a 48 meses", como prometido pelos franqueadores. Logo após abrir a loja, percebeu que isso nunca aconteceria se agisse de forma estritamente ética e legal.
Por meio do sistema de gestão da rede de franquias, chamado Tiger, Souza constatou que as lojas que têm participação acionária das empresas de Alberto Saraiva (Alsaraiva, Século XXI e Gennius) obtêm resultados melhores que as unidades de franqueados independentes.
Marcelo de Souza está processando a rede Habib's
Aparentemente, a maior "mágica" dos preços baixos do Habib’s sai da cartola do desrespeito à legislação trabalhista. Lojas com o mesmo número de funcionários apresentam diferenças salariais de até 71,4%, apesar de estarem sob as mesmas esferas sindicais.
Foi o que ocorreu, por exemplo, em abril do ano passado. Naquele mês, a loja próxima ao aeroporto de Congonhas, zona sul de São Paulo, gastou apenas R$ 9.351,11 com os salários de seus 30 funcionários declarados no software Tiger, o que dá um inacreditável holerite médio de R$ 311,70. No mesmo mês, o restaurante de Marcelo de Souza em Caieiras teve uma folha de R$ 32.734,62, o equivalente a R$ 1.128,78 por funcionário (eram 29 então).
A ação judicial revela que as lojas da família Saraiva já pagavam menos do que o piso dos profissionais de restaurantes (entre R$ 1.230 e R$ 1.279 nas diferentes cidades da Grande SP) antes da pandemia do novo coronavírus, que permitiu o achatamento salarial.
Em novembro de 2019, o restaurante do Tremembé, na zona norte da capital paulista, gastou R$ 39.523,03 com seus 32 funcionários (R$ 1.235,09 em média), enquanto o de Caieiras apresentou um dispêndio de R$ 51.686,54 com 30 empregados (média de R$ 1.722,88 por trabalhador).
Por que tanta diferença? Porque as lojas que têm participação dos donos da marca Habib's pagam salários baixíssimos, sonegam horas extras e não registram todos os funcionários, responde a ação judicial.
Há 15 anos trabalhando em unidades Habib's na Grande São Paulo, o cozinheiro Paulo Mendes da Silva, 39 anos, confirma. "Se eu tiver quatro anos de registro [na carteira] no Habib's é muito", diz. Ele foi chefe de cozinha durante cinco anos em Diadema e outros seis meses no Jabaquara sem qualquer direito trabalhista. "Tinha salário, mas não era registrado", lembra.
Silva também passou seis meses na loja de Alphaville. "Não me pagaram hora extra nem adicional. Tinha horário pra entrar, mas não pra sair", conta. Segundo o cozinheiro, o Habib's se aproveita de uma mão-de-obra que não tem muitas opções de trabalho formal.
"No Habib's eles te pegam pra trabalhar na hora, não precisa ter currículo, não tem seleção. Muita gente trabalha só no final de semana, quando tem maior movimento. Ganham R$ 150, cinco 'contos' a hora e não tem choro", revela. Esses são os "horistas". Atualmente, de acordo com o Sinthoresp (Sindicato dos Empregados em Hospedagem e Gastronomia de São Paulo e Região), o piso salarial por hora na Grande São Paulo varia de R$ 5,59 a R$ 5,81.
Quando as pessoas pedem demissão e ameaçam ir à Justiça Trabalhista, os administradores do restaurante dão um "cala a boca", diz Silva. "Eles pagam férias e 13º salário, uns três mil reais, e fica assim mesmo. E se você quer trabalhar em outra loja não vai colocar na Justiça porque se queima."
O processo movido por Marcelo de Souza contra o Habib's também revela que a rede se apropria de boa parte dos 10% que parcela dos clientes deixa no caixa pensando estar engordando salários de garçons e cozinheiros. Na ação, ele relata o repasse aos funcionários de apenas R$ 2.995 de uma arrecadação estimada em R$ 11.303, em novembro de 2019, pela loja do Tremembé.
O garçom Pedro Paulo reclama de hora extra não paga
Além de reter a maioria das gorjetas, o Habib's usa o dinheiro como "motivacional" para os funcionários, como uma forma de compensar quem trabalha e produz mais, principalmente os "colunas", como são chamados os chefes. É necessário um esforço hercúleo para se ter uma renda extra razoável para quem ganha R$ 1.600 mensais. "Eu tive de trabalhar 30 horas extras num mês pra pegar R$ 700 de taxa de serviço", conta o garçom Pedro Paulo Pereira, de 25 anos.
Isso gera uma enorme distorção entre lojas da mesma rede, mas de donos (e práticas) diferentes. "Quando trabalhei em Vargem Grande Paulista, e lá eles pagavam os 10% dos funcionários direitinho, ganha de R$ 300 a R$ 450 por mês de gorjeta. Em Tamboré, que fatura bem mais que Vargem Grande, recebia só uns 70 reais", conta o cozinheiro Paulo Mendes da Silva.
Não bastassem as irregularidades trabalhistas (salários inferiores ao piso, falta de registro em carteira, sonegação de horas extras) e éticas (apropriação da gorjeta), Marcelo de Souza observou que os restaurantes da família Saraiva gastam menos com insumos que eles mesmos fabricam, indicativo de uso de produtos de qualidade inferior e de concorrência desleal dentro da própria rede.
"O que é mais caro na esfirra é o recheio. Eles mandavam colocar menos carne do que a rede determina. Eu sei porque eu fazia", confirma o chefe de cozinha Antonio Paulo Mendes da Silva.
Na ação judicial, Souza relata que passou a questionar os diretores da rede Habib's sobre as "discrepâncias" entre lojas próprias e de terceiros e começou a documentar as irregularidades em atas notariais registradas em cartório.
As respostas não foram nada animadoras. "Ao atender aos chamados para reuniões no escritório das requeridas [Alsaraiva, Século XXI e Gennius, as empresas de Alberto Saraiva], onde não se pode participar com celulares por receio de gravações, as sugestões da rede são exatamente as mesmas: solicitam aos requerentes [Souza e sua sócia] que mitiguem direitos trabalhistas básicos para conseguirem resultados lucrativos em sua loja", escreveu na inicial o advogado Alvaro Fumis Eduardo, que defende Souza.
Insistente, o comerciante acabou sendo excluído do grupo de WhatsApp dos franqueados do Habib's. Em julho do ano passado, acabou bloqueado no sistema Tiger e deixou de ter acesso às informações das lojas da rede. Ciente de que acreditou em um "conto de fadas", tenta agora ter de volta o que pagou de taxa de franquia, royalties e verbas para promover a marca, o que soma quase R$ 2 milhões.
Procurada pelo Notícias da TV, a rede Habib's preferiu não se pronunciar sobre a ação. Após a publicação deste texto, a empresa enviou a seguinte declaração: "O Habib's informa que a companhia não se manifesta sobre processo judicial em andamento envolvendo a relação entre franqueador e franqueado".
O Notícias da TV informa que Marcelo de Souza é conhecido de mais de três décadas do autor deste texto, e isso foi fundamental para sua publicação. Salienta, no entanto, que adotou o mesmo rigor jornalístico que teria com qualquer reportagem de entretenimento, checando informações e ouvindo outras fontes (inclusive um ex-franqueado e um atual franqueado da rede Habib's, não citados neste texto, mas que confirmaram irregularidades trabalhistas).
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