CONFORTO EMOCIONAL
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Adriana Esteves em O Cravo e a Rosa; reprisada pela 5ª vez, novela conquistou o público
Depois de passar toda a fase aguda da pandemia resguardada pelas reprises, a Globo decidiu criar uma nova faixa para novelas antigas. Parecia uma manobra arriscada, mas O Cravo e a Rosa caiu na boca do povo --prova de que a emissora sabe surfar na memória afetiva do público. Pouco importa se o folhetim é uma "farofa", um poço de conceitos ou se tem uma barriga imensa: a graça é despertar a nostalgia dos espectadores.
A nova faixa é apenas um exemplo do potencial da memória enquanto produto. O canal Viva, líder de audiência na TV paga segundo o PNT (Painel Nacional de Televisão), e o sucesso do remake de Pantanal --que mexe com os fãs da primeira versão do folhetim, exibida em 1990 pela extinta Manchete (1983-1999)-- provam esse potencial. É possível discutir a qualidade dos roteiros, da fotografia ou da trilha sonora, sim, mas uma coisa perpassa tudo isso: a forma como a emoção pega os espectadores.
"Quando se fala em reprise de novela, estamos nos referindo a viver a sensação do conforto emocional, principalmente quando o período atual é pandêmico, polarizado. As reprises das novelas afastam essas realidades, remetendo a pessoa psiquicamente a essa época de alívio, tranquilidade e transcendência", explica Alexandre Bez, psicólogo e especialista em Relacionamentos pela Universidade de Miami.
As novelas, afinal, são veículos de prazer. O espectador se reconhece em um determinado personagem, mesmo que inconscientemente, e curte, vibra e chora com cada desenlace da trama. Acima de tudo, o folhetim é inserido na rotina de uma determinada fase de vida. Quando o expectador revê, volta para aquela época --muitas vezes, sob um prisma nostálgico.
Noveleiras convictas, Nathalie Maia e a Bruna Habinoski não conseguem eleger suas novelas favoritas sem levar em consideração as memórias que elas despertam. "As novelas acabam sempre vindo com um momento familiar. Aprendi a gostar muito de novela com a minha avó, que não é mais viva, e uma das ultimas novelas que ela acompanhou foi Orgulho e Paixão [2018]. Por isso, estou reassistindo", conta Bruna em entrevista ao Notícias da TV.
A jovem, que criou o podcast Novelíssimas ao lado da ex-colega de trabalho Nathalie, confessa ser fã de carteirinha de reprises --nos últimos dois anos, reassistiu seis títulos só pelo Globoplay. Isso sem contar sua queridinha na TV aberta, claro.
"O Cravo e a Rosa me traz uma nostalgia muito grande, porque eu tinha seis, sete anos, e eu lembro que eu chegava da escola e minha mãe já estava na TV. Pegávamos um café e íamos conversando e assistindo. É uma novela que eu já perdi as contas de quantas vezes assisti justamente por isso", diz.
Além dessas memórias individuais, as novelas ainda promovem uma nostalgia compartilhada. Basta pensar em assistir a uma novela da década de 2000 e ver os aparatos tecnológicos, a moda questionável e as questões sociais debatidas à época --como a clonagem humana de O Clone (2001).
"Essas referências dão uma sensação de pertencimento cultural, de quem é seu grupo, qual é o seu lugar. A novela tem esse potencial de se estabelecer na memória. E as novelas que marcaram vão ser algo que aquela geração compartilha, isso tem um valor cultural muito interessante", explica Clarice Greco, coordenadora do Grupo de Estudos de Análise de Produtos Audiovisuais da Unip (Universidade Paulista) e ex-pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo).
A relação entre as telenovelas e os espectadores no Brasil é muito única. Aqui, os folhetins costumam abordar questões da realidade local e criar um novo imaginário a partir do real. Pense em como qualquer menção ao bioma Pantanal despertará memórias do personagem Velho do Rio (Osmar Prado). Ao mesmo tempo, o folhetim se debruça no desmatamento, problema real e pertinente do Brasil.
A receita para isso, mais uma vez, é a emoção. As críticas e as abordagens sociais farão ainda mais sentido se as pessoas se identificarem, ou reconhecerem na tela, um traço de alguém que conhecem, seja no mocinho, no vilão ou no próprio entorno.
"O que te faz voltar a todo capítulo não é a estética perfeita, o roteiro perfeito, o personagem perfeito… É a emoção. Quando eu assisti a Paraíso Tropical [2007] pela primeira vez, eu nem captava muito as críticas que ela tinha. Agora, eu fui reassistir e eu amei dez vezes mais, porque tinha coisas da genialidade do Gilberto Braga [1945-2021] que eu só fui entender adulta", reitera Nathalie, do Novelíssimas.
Ainda assim, a novela sempre vai estar marcada pela memória afetiva que ela têm da adolescência. O celular que usava na época, as roupas, a rotina de ir e vir do cursinho --assim como Camila, personagem de Patrícia Werneck. Esse é o destaque do melodrama, embora ele tenha suas qualidades estéticas.
Clarice Greco destrinchou essa identificação do público no livro Qualidade da TV. Ela entrevistou críticos, acadêmicos e jornalistas especializados; assim como conversou com o público em geral, que assiste aos folhetins descompromissado. A conclusão é simples: os espectadores privilegiam a trama, os personagens, muito mais do que qualquer atributo estético. Nada fisga o coração do público como um bom conflito.
Velho do Rio aluga duplex no imaginário coletivo
O problema é quando esse conflito perde a "data de validade". O termo "memória afetiva", aliás, é a cartada favorita dos noveleiros para justificar o gosto por um folhetim que pode não ser lá aquelas coisas, mas marcou época. Às vezes, no entanto, nem isso salva a trama de um reprise.
Para não perder o encanto, Bruna prefere nem se arriscar. O Beijo do Vampiro [2003] é um exemplo em que a reprise não é uma possibilidade. "Não quero estragar a memória. Eu era criança, assistia com o meu irmão, era nosso momento juntos... Talvez pudesse ter alguma frustração", explica. Nathalie começou a assistir ao folhetim pelo Viva, mas preferiu parar. Foi a última tentativa para impedir que suas ressalvas estragassem sua memória.
Mas por que isso acontece, sendo que a obra não mudou? Provavelmente, porque o público e a sociedade mudaram. As questões em determinado folhetim podem não ter sido abordadas com a profundidade que o espectador de agora espera. Ou pode ter pecado em pautas sociais que ganharam mais luz nas últimas décadas. Ou é uma questão tecnológica mesmo --é difícil assistir aos efeitos especiais de O Beijo do Vampiro sem pensar nas obras mais recentes. Como afirma Clarice:
Às vezes, a obra apenas não cabe mais nesse tempo. O que você pode fazer é abraçar quem foi. Entender que sua nostalgia é em relação a si mesmo. 'Eu não quero me desvencilhar dessa pessoa que eu era, eu gostava tanto, eu quero continuar gostando, porque ainda sou eu'. Seu olhar fica diferente para obras antigas, por você e pelo contexto. Mas o valor afetivo que ela tinha pra você ainda te une a ela.
Ou seja: está tudo bem pensar que determinado casal é tóxico, ou um personagem é machista, mas continuar apegada à trama. A memória sempre estará ali, afinal. Assim como uma novela antiga pode ser irretocável esteticamente e socialmente, mas você a adiar porque vivia um período difícil na vida pessoal.
"Caso a vida de alguém tenha sido complicada à época de tal novela, assisti-la se torna emocionalmente inviável. Reviver aquele período pode evocar e/ou ressuscitar os traumas do passado. Às vezes, eles podem até ser potencializados em uma nova versão de sofrimento pessoal. E esse conflito pode ser reverberado em sonhos ou manifestações sintomatológicas! Nesses casos, entra uma orientação de Freud [1856-1939]: o certo é deixar o passado em seu lugar, no passado", orienta o psicólogo Alexandre Bez.
Se assistir a um folhetim de um período conturbado causa tantos problemas, pense no potencial de rever uma novela carregada de boas lembranças --como as sessões conjuntas de Orgulho e Paixão feitas por Bruna e a avó. A Globo percebeu isso em 2010, quando decidiu embalar essas boas recordações e vendê-las como produtos.
Só naquele ano, o grupo lançou o canal Viva e alguns folhetins em DVD --Roque Santeiro (1985) foi o primeiro. O portal Memória Globo, que aglutina páginas das principais novelas da emissora, além de depoimentos de grandes nomes, veio logo na sequência. É importante pensar que, à época, ter acesso a esses produtos era muito difícil. Nada como o atual streaming, por exemplo. Até dava para gravar um capítulo ou outro pelo videocassete, mas comercializar uma novela inteira era sofrível.
"O canal Viva e os horários de reprises têm, absolutamente, sim [relação com a nostalgia]. Foram iniciativas criadas para enaltecer esse papel nostálgico que as novelas têm, né? São lugares de memória que a Globo criou para suprir uma demanda cultural por nostalgia e memória televisiva", completa Clarice.
A nostalgia, no entanto, estava embrenhada na programação havia um bom tempo. Dos quadros do Vídeo Show (1983-2019) ao Vale a Pena Ver de Novo (faixa de reprises que existe desde 1980), o público podia saborear o passado em pequenas doses. A mídia impressa resgatava outro pilar: o do pertencimento. Os noveleiros se reuniam em determinados títulos para comentar a novela, consumir mais a obra. Hoje, esse papel é das redes sociais, como explica Clarice:
A internet fez com que os noveleiros se encontrassem. É mais fácil pra você encontrar material, compartilhar material e conversar sobre isso. O processo de recepção da telenovela, ou de qualquer produto cultural, não termina quando a capítulo acaba. Ele continua nas conversas, na percepção das pessoas, e a internet prolonga esse processo. E, com isso, dá mais visibilidade às opiniões. Isso ajudou muito os canais a perceberem quais os rumos que a trama pode tomar.
As possibilidades decorrentes da internet também permitiram que o público "voltasse no tempo". Basta reparar no enorme catálogo de obras antigas no Globoplay. Por outro lado, a ascensão do streaming criou um novo paradigma para os remakes: quando, afinal, é necessário criar uma nova versão de um clássico? Para as mandantes do Novelíssimas, só vale apostar em novelas cujas imagens estão fora do alcance, ou em folhetins que uma geração inteira não se lembra.
A dica é não se limitar tanto às reprises a ponto de não se abrir para uma obra nova. Isso, aliás, pode caracterizar até uma patologia. "Essa nostalgia patológica, o que psiquiatricamente também pode ser chamado de 'ruminação mental' também pode existir o componente de Transtorno Obsessivo-Compulsivo, presentes nas neuroses de fixação", destrincha o psicólogo à reportagem. Pequenas doses do passado, porém, são muito bem-vindas.
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