NOVO CENÁRIO
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Tony Ramos como Antônio em Terra e Paixão, atual novela da Globo; e se ela fosse criada por IA?
"ChatGPT, você poderia criar as primeiras cenas de uma telenovela brasileira?"
Basta digitar esta única frase no ChatGPT, uma das plataformas mais populares de inteligência artificial do mundo, para se surpreender com o poder dessa ferramenta. Quando o fiz, na tarde de 14 de dezembro, recebi dois argumentos de roteiro prontinhos.
O primeiro dizia respeito a uma jovem jornalista, Marina, que sente uma "conexão imediata" por um músico de rua, Lucas. Eles se cruzam por acaso, mas voltam a se encontrar na inauguração do empreendimento do outro protagonista da história, Mateus, um empresário ambicioso. "Esse é apenas um ponto de partida", define a IA. "E o desenvolvimento da trama pode envolver mistérios, romance, intrigas familiares e questões sociais relevantes."
A plataforma sugeriu até possíveis escalações: Marina poderia ser interpretada por Marina Ruy Barbosa; Lucas poderia acabar com Chay Suede (que tem talento musical, veja só) e Mateus, com Cauã Reymond. O nome da novela também já havia sido definido: Caminho Cruzados.
O segundo é mais clichê. Helena (Manoel Carlos estaria orgulhoso!), uma "mulher batalhadora", luta para que o marido, Marcos, deixe de se envolver com Pablo, o líder do tráfico na favela em que moram. Outros personagens importantes seriam Jéssica e Sônia, respectivamente amiga e mãe de Helena.
Eu passei três minutos nessa tarefa, e poderia ter uma trama bem mais detalhada se dedicasse mais tempo. Ou seja: o poder da IA é real. Não à toa, ela já vem causando rebuliço nos Estados Unidos.
Entre maio e setembro, o WGA (sindicato norte-americano dos roteiristas) instaurou uma greve, exigindo uma série de mudanças da AMPTP (Aliança dos Produtores de Filmes e Televisão), desde um aumento no pagamento até o instituição de diretrizes claras sobre como trabalhar com serviços de streaming. Mas, como parte de suas demandas, a organização também lutou para proteger seus meios de subsistência da IA.
Os trabalhadores não queriam que seus roteiros alimentassem as ferramentas, que poderiam tomar seus empregos no futuro.
reprodução/instagram
Roteiristas protestam em frente a estúdio nos EUA
O debate ainda não atingiu com muita força os roteiristas do Brasil, mas o monstro da IA já está à espreita. Mas como funcionaria isso? Entrevistei o próprio ChatGPT para sanar minhas dúvidas.
Uma das minhas maiores questões é que ferramentas como o ChatGPT, chamada de transformadores generativos pré-treinados, tem um banco de dados fechado. As informações ali contidas são as que estavam na Internet até 2021. Ou seja: se uma novela está no ar agora, essa ferramenta não conseguiria analisar comentários e menções sobre elas nas redes sociais.
Mas outro tipo de robô conseguiria fazer isso. "Uma inteligência artificial poderia ser programada para analisar dados e padrões de comportamento do público, como redes sociais, pesquisas online, feedbacks e outros indicadores, a fim de identificar tendências e preferências. Com base nessa análise, a IA poderia sugerir ajustes na trama de uma novela para melhor atender às expectativas do público", explica a ferramenta.
Outro ponto é que, por criar a partir do que já existe, as ferramentas de IA poderiam não inovar em nada. Claro, a maneira como você elabora os comandos para o robô influencia nas respostas que ele vai te dar. Mas, no fim, ele beberia das mesmas fontes.
Você pode pensar que os autores humanos se inspiram em outros autores, aqueles mesmos que já estão no banco de dados. Mas nossas vivências comprovadamente influenciam no processo de criação. Às vezes, um autor pode ter uma ideia de trama ao misturar uma conversa que viu no metrô, a memória de uma visita ao parque em 1995 e um livro que leu para a sobrinha.
O ChatGPT se limitaria ao conhecimento específico de novelas, e ele mesmo admite que teria dificuldades nesse quesito. "A verdadeira inovação na criação artística ainda depende da criatividade humana. A IA pode sugerir ideias com base em análises de dados, mas a capacidade de conceber narrativas complexas, desenvolver personagens envolventes e explorar temas profundos muitas vezes continua sendo uma característica distintivamente humana."
A inteligência artificial ficaria com a tarefa de otimizar tarefas repetitivas, ou de ajudar os criadores humanos "na geração de ideias, no aprimoramento de diálogos ou na otimização de elementos narrativos".
Uma das grandes reflexões dos últimos anos é como a indústria audiovisual em geral reforçou estereótipos de gênero e de raça. Personagens LGBTQIA+ masculinos normalmente ocupam o lugar da "válvula de escape"; e empregadas foram interpretadas, majoritariamente, por atrizes negras.
Se o ChatGPT seguisse as novelas existentes, ele provavelmente repetiria o erro. A própria ferramenta sugere uma supervisão humana nesse sentido, mas teria como treinar os próprios algoritmos para evitarem isso de primeira? A resposta é: de certa forma, sim.
arquivo pessoal
IA cria novela brasileira a partir de dados
A ferramenta fez uma lista de atitudes que poderiam ser tomadas. Uma delas é a análise de sentimento e de feedback do público, mencionada no primeiro tópico. O algoritmo notaria as reclamações de alguma representação errônea e poderia corrigir a rota da novela. Mas, claro, o dano já estaria feito.
Outro ponto interessante seria usar algoritmos de detecção de viés. "Desenvolver algoritmos que possam detectar e quantificar viés em textos é uma área em crescimento na pesquisa de IA. Esses algoritmos podem ser usados para analisar roteiros em busca de estereótipos e sugerir modificações que promovam representações mais justas e equitativas", explica.
Os demais aspectos da lista envolvem humanos: um treinamento responsável e transparente da ferramenta por parte de quem a desenvolve; a combinação de criatividade humana com a análise objetiva da IA; e por fim, a inclusão de especialistas em ética, diversidade e inclusão no processo de criação.
Dada a situação internacional e o potencial da IA na criação de novelas --e de outros programas, como os de auditório e até os telejornais--, a televisão precisa, sim, se preparar para esse novo cenário.
O ChatGPT sugeriu práticas para que o setor televisivo aproveite os benefícios da IA e "melhore a programação, crie conteúdos mais inclusivos e adapte-se às mudanças nas preferências do público, ao mesmo tempo que mantém um equilíbrio com a sensibilidade cultural e ética".
O primeiro fator diz respeito a diversidade. A IA poderia ser usada para analisar roteiros e buscar possíveis preconceitos ou representações problemáticas. Ao mesmo tempo, bots poderiam analisar as opiniões do público e auxiliar na criação de uma programação que representasse diferentes culturas, grupos étnicos, gêneros e orientações.
Robôs também poderiam ser programados para analisar as opiniões do público e criar um relatório sintetizando pontos de melhoria para cada edição de um programa, por exemplo.
As emissoras também poderiam fomentar o desenvolvimento colaborativo --basicamente, o que fiz para a "criação" de uma novela--, bem como fornecer treinamentos para profissionais do setor, incluindo roteiristas, diretores e produtores, para que compreendam melhor como a IA pode ser usada de maneira eficaz.
Além das empresas, o Estado como um todo precisa se preparar. Parte do problema dos Estados Unidos, aliás, reside no fato de não existir nenhuma proteção para os roteiristas que perderam seus empregos devido à IA.
Aqui, também não temos nenhuma legislação específica. Mas algumas das leis existentes podem ser usadas para parte das questões jurídicas relacionadas à inteligência artificial.
Por se tratar mais de uma questão interpretativa do que lógica, decidi entrevistar um profissional humano: Alexander Coelho, especialista em Direito Digital e Proteção de Dados. Em relação aos empregos, ele afirma que a Justiça poderia intervir nos casos em que seja demonstrado que a demissão ocorreu devido à IA. "Os colaboradores poderiam alegar que foram demitidos sem justa causa e pleitear indenização", explica ele.
Por outro lado, o especialista admite que a questão é "complexa" e "não foi totalmente resolvida". "É importante que a sociedade e o governo estejam atentos a essa questão e que busquem soluções que protejam os direitos dos trabalhadores e dos consumidores", afirma.
Outro ponto que poderia causar atrito seriam os direitos autorais. Afinal, algum ser humano precisa tomar crédito (e responsabilidade, no caso de a criação causar danos) sobre a obra. Mas quem seria? A pessoa que fez perguntas à IA, como eu? O desenvolvedor que programou a IA? Os autores cujas obras estão inscritas no banco de dados da IA?
Segundo Coelho, depende. A Justiça tem leis que dão respaldo para cada uma dessas três opções. Também há a possibilidade de os direitos serem divididos entre os autores --nesse caso, ela é denominada como uma "obra coletiva".
Questões sobre a IA poderiam se enquadrar nos artigos 1º, 7º e 11º da Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei nº 9.610/98). De forma geral, os três dão um panorama do que são as obras cujos direitos autorais são exigidos, além de detalharem os direitos morais e patrimoniais do autor.
Basta a Justiça relacionar o texto já existente ao novo cenário criado pela IA. "Por exemplo, o artigo 7º da lei define que a autoria de obra intelectual é atribuída ao autor. No caso de uma obra de arte criada por IA, o autor pode ser uma pessoa física ou jurídica que tenha criado a IA ou que a tenha utilizado como ferramenta para criar a obra", exemplifica o advogado.
Mas, no caso de uma disputa jurídica entre todos os possíveis autores, a coisa ficaria mais nebulosa. Por enquanto, prefiro deixar os direitos de Caminhos Cruzados para o próprio ChatGPT. Obrigada.
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