EXCLUÍDAS DA PATOTA
Renato Rocha Miranda/TV Globo
Malu Mader e Cláudia Abreu em cena de Celebridade: as duas foram banidas da patota de Gilberto Braga
Um dos maiores nomes da teledramaturgia brasileira, Gilberto Braga (1945-2021) gostava de escrever para determinados atores e sempre teve sua patota, aquele grupo de astros que repetia em suas novelas. Fizeram parte dela Antonio Fagundes, Fabio Assunção, Gloria Pires, Beatriz Segall (1926-2018), Isabela Garcia, Cássio Gabus Mendes, Cláudia Abreu, Malu Mader e muitos outros. As duas últimas, no entanto, caíram em desgraça com autor da Globo, que morreu aos 75 anos em outubro de 2021.
A revelação é da biografia Gilberto Braga - O Balzac da Globo, assinada pelos jornalistas Mauricio Stycer e Artur Xexéo (1951-2021). A obra é uma deliciosa reportagem sobre o criador das memoráveis novelas Dancin' Days (1978) e Vale Tudo (1988) e das minisséries Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992). Embora se afirmasse "apenas um escritor de folhetins", Braga foi inigualável ao retratar a elite brasileira e ao abordar temas sensíveis como falta de ética, racismo, homossexualidade e alcoolismo.
O autor se envolvia na escalação de suas novelas e defendia sua patota, não apenas por gostar de escrever "ouvindo" a voz de seus personagens, mas também por uma questão prática. Conta a biografia:
"Gilberto tratava a escolha dos elencos de suas novelas de forma muito cuidadosa. Certa vez, recusou uma sugestão dada por João Ximenes [Braga] para a escalação de uma atriz, argumentando que não teria vontade de jantar com ela. 'Acho que ela faria bem o papel. Tem que ser boa companhia pra jantar também?', perguntou o roteirista. 'Tem. Porque é patota. Eles [atores] vão passar meses juntos, é desgastante, têm de gostar muito uns dos outros ou podem pirar. Se nós acharmos que alguém não vai se enquadrar no grupo, como colega, não chamamos'."
Malu Mader, de 57 anos, foi durante duas décadas a rainha dessa patota. Entre 1984 e 2003, ela fez sete obras escritas por Braga. Quase o mesmo número de novelas de outros autores em que atuou. Foi protagonista de Anos Dourados, O Dono do Mundo (1991), Anos Rebeldes, Labirinto (1998), Força de um Desejo (1999) e Celebridade (2003).
Era queridinha top, do tipo que frequentava jantares na casa do dramaturgo. "Se a Malu Mader não fosse namorada de um dos meus melhores amigos, gostaria de casar com ela e ter filhos", declarou Gilberto Braga ao Jornal do Brasil em 1986.
Essa paixão acabou em 2003, em Celebridade, por coincidência a novela que mais realizou Gilberto como "autor" (ele escolheu elenco, trilha sonora e deu palpite até no figurino). "O clima positivo gerado por Celebridade acabou ajudando a abafar um grave problema, que abalou para sempre as relações de Malu Mader com Gilberto Braga", revela o livro.
De acordo com a apuração de Stycer e Xexéo, Malu e Gilberto eram tão íntimos que a atriz pôde escolher se interpretaria a heroína, a bem-sucedida Maria Clara Diniz, ou a vilã, a invejosa Laura, que acabou ficando com Cláudia Abreu. Malu até escolheu o nome da personagem, em homenagem à dramaturga Maria Clara Machado (1921-2001) e à atriz Leila Diniz (1945-1972). À certa altura, no entanto, Malu começou a achar sua Maria Clara chata, enganada por todos o tempo inteiro: "Na visão da atriz, os diálogos de Maria Clara pareciam escritos sem gosto e eram repetitivos".
A atriz, então, passou a reescrever cenas com a anuência do autor, em conversas telefônicas. Contam os escritores:
Gilberto relatou que as ligações ocorriam tarde da noite e que ele, cansado, autorizou várias vezes Malu a alterar o texto de cenas que seriam gravadas no dia seguinte pela manhã. Gilberto contou que Malu chegava para gravar com Marcos Palmeira, que fazia o papel do fotógrafo Fernando, entregava a nova versão da cena, reescrita por ela, e dizia: 'A cena agora é essa. Decora aí'.
Isso acabou gerando um baita climão no estúdio. Palmeira interrompeu uma gravação para perguntar ao diretor se era para fazer o que ele estava pedindo ou o que Malu assoprava em sua orelha. O diretor colocou panos quentes.
Malu colocou em xeque várias cenas da novela. Contam Stycer e Xexéo: "Segundo Dennis [Carvalho, diretor artístico], Malu resistiu a gravar a cena mais lendária de Celebridade, a surra que Maria Clara dá em Laura dentro de um banheiro. Malu nega que isso tenha ocorrido, mas admite que questionou Gilberto a respeito. 'Fiz algumas considerações sobre a opção pelo Ibope, por meio da catarse da vingança, em detrimento do heroísmo da personagem'".
Malu e Gilberto continuaram amigos, mas ela nunca mais foi chamada para fazer uma obra dele. Depois de Celebridade, atuou em apenas mais quatro novelas, nenhuma delas no horário mais nobre. Foi uma das primeiras estrelas da Globo a serem dispensadas pela emissora, em 2018, depois de 35 anos.
Cláudia Abreu, 53 anos, brilhou com a "cachorrona" Laura de Celebridade. Assim como Malu Mader, seria sua última personagem criada por Gilberto Braga. E o que mudou para sempre a relação profissional dos dois foi justamente o gosto do autor de escrever pensando no elenco.
Um ano antes da estreia de Paraíso Tropical, em março de 2007, Gilberto "reservou" a atriz. Queria Cláudia nos papéis de Paula e Taís, a gêmea boa e a gêmea má da novela. Numa conversa com o autor, Cacau, como a atriz é chamada, contou que estava planejando ter um segundo filho (filha, na verdade), mas que topava adiar a gravidez. Prometeu tomar cuidado, "mas o destino interferiu no roteiro", ela ficou grávida poucos meses depois e teve de abandonar o barco. Os papéis ficaram com Alessandra Negrini, apesar da oposição de Gilberto.
"Não é que Gilberto tenha escrito as personagens de Paula e Taís especialmente para Cláudia. Na verdade, Gilberto criou Paraíso Tropical para a atriz. Escrever uma novela protagonizada por gêmeas não era um sonho de autor. No seu entorno, todo mundo achava isso meio batido", escrevem os biógrafos. "'A única função de fazer uma novela de gêmea boa e gêmea má era uma ode de amor à Cláudia', diz João Ximenes Braga, que integrou a equipe de roteiristas do folhetim. 'Ele escreveu a novela para mim', confirma Cláudia."
Gilberto e Cláudia nunca discutiram por causa disso. O autor até declarou que não estava triste por não poder contar com a atriz, "porque uma criança é mais importante que uma novela". Mas ficou uma mágoa. E os dois encerraram uma parceria de mais de 15 anos.
Quatro anos depois, Gilberto Braga ainda viveria outra grande decepção com uma atriz. Após Malu Mader e Cláudia Abreu serem excluídas da 'patota'", ele resolveu apostar em Ana Paula Arósio para protagonista de Insensato Coração (2011), a primeira novela a ser chamada de "das nove".
Mas, no primeiro dia de gravação, Ana Paula não apareceu. Teria chegado à conclusão de que o papel não era o que havia sido prometido para ela. Braga classificou o episódio de "atitude muito antiprofissional". Ana Paula encerrou a carreira, se afastou da mídia e nunca explicou por que rejeitou a personagem Marina Drummond, que acabou defendida por Paolla Oliveira.
Estrela de Dancin' Days, a novela que alçou Gilberto Braga ao primeiro time de autores da Globo, Sônia Braga só não fez parte de sua patota porque optou por investir acertadamente na carreira no cinema internacional. Em 1999, ele convidou a atriz para uma participação especial em Força de um Desejo, sua última novela das seis como autor. Foi uma longa negociação, que marcou a volta da estrela à TV brasileira após quase 20 anos.
Sônia, no entanto, se recusou a gravar uma cena que revelava que sua personagem, uma mulher maltratada pelo marido, ficava acordada à noite porque bebia. Não queria aparecer como alcoólatra. Gilberto ficou possesso com a confusão entre realidade e ficção, revela o livro. "Brigamos, nunca mais nos falamos", resumiu o autor.
MÁRCIO DE SOUZA /TV GLOBO
Fabio Assunção e Gilberto Braga no lançamento de Paraíso Tropical: patota
Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e Obra do Autor que Revolucionou as Novelas Brasileiras (368 páginas; impresso: R$ 126,01; ebook: R$ 58,41) está nas livrarias desde os primeiros dias deste ano. Em São Paulo, o lançamento oficial será na próxima terça (20), na Livraria da Vila (Vila Madalena).
Leitura hipnotizante, como bem classificou o jornalista e escritor Edney Silvestre, é resultado de uma extensa pesquisa da vida e da obra de Gilberto Braga, um crítico de teatro e professor de francês que foi trabalhar na televisão meio que por acaso (ele queria mesmo era ser diplomata).
Revela aspectos pessoais de Gilberto Braga desconhecidos, como a descoberta, por ele mesmo, de que seu pai foi um policial corrupto. Mostra como o jovem de classe média "alienado" se tornou um especialista na "high society" carioca e escreveu algumas das obras mais "políticas" da TV.
Assim como Gilberto Braga foi um monstro sagrado da telenovela, os autores de sua biografia são dois gigantes do jornalismo cultural brasileiro. Artur Xexéo iniciou o projeto em 2019, mas teve de interrompê-lo em julho de 2021, quando, em apenas um mês, foi diagnosticado com câncer, fez a primeira sessão de quimioterapia e sofreu uma parada cardiorrespiratória.
Três semanas após a morte de Xexéo, Gilberto Braga convidou Mauricio Stycer para concluir a obra. O crítico de TV herdou cerca de 50 textos produzidos por Xexéo, entre eles um capítulo inteiro do livro, mais 12 sessões de entrevistas com Gilberto e duas dezenas de depoimentos de pessoas próximas a ele. Stycer não teve tempo de entrevistar Braga para esclarecer dúvidas que encontrou no material. O autor morreu quatro meses depois de Xexéo.
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