Ricardo Linhares
JOÃO MIGUEL JÚNIOR/TV GLOBO
Os autores Ricardo Linhares e Gilberto Braga na apresentação de Babilônia à imprensa, em fevereiro
DANIEL CASTRO
Publicado em 25/8/2015 - 6h06
Para Ricardo Linhares, coautor de Babilônia, a novela das nove que se encerra nesta sexta-feira (28) foi vítima de um "julgamento moral" em uma "TV aberta defasada". Pior audiência da faixa das 21h, a produção não foi recusada por falta de qualidade ou por valores artísticos, mas por ousar tocar em temas espinhosos e relevantes, como corrupção, religião e homossexualidade. "É importante não confundir audiência com qualidade. Senão, Chaves seria uma obra-prima. Nós tivemos um julgamento moral, como se o tema pudesse abalar os valores tradicionais familiares", diz.
Em entrevista exclusiva ao Notícias da TV, por e-mail, Linhares toca em um ponto nevrálgico. O telespectador brasileiro é conservador, não quer ver duas senhoras se beijando na TV com a netinha ao lado. E a televisão não conseguiria mostrar uma trama como a da série norte-americana Empire, estrelada por negros que produzem hip hop e que trata com naturalidade dois homens na cama. "A TV aberta brasileira está defasada", conclui.
Notícias da TV - Qual o balanço que você faz de Babilônia? O público te decepcionou?
Ricardo Linhares - Tratamos de assuntos relevantes como corrupção, impunidade, mistura de política e religião, racismo, homossexualidade, intolerância, novas formações familiares, conflitos sociais. Foi uma trama ousada e anticonvencional. Uma novela forte e marcante, líder de audiência no país. Tivemos um público fiel e entusiasmado e uma excelente repercussão nas redes sociais. Desde a estreia, as manifestações positivas sempre foram maiores do que as negativas, embora as críticas façam mais barulho do que os elogios.
Qual teria sido o erro capital da novela para o público que mudou de canal? Foi no primeiro capítulo, já que a audiência foi boa e nunca mais se igualou?
O público que mudou de canal foi, percentualmente, pequeno. Por exemplo: aproximadamente 2% foi para uma emissora, 2% foi para outra. Nos dois grupos de discussão realizados, e que eu acompanhei, a novela foi reconhecida como boa e forte.
Entre as espectadoras que diziam não acompanhá-la, não havia rejeição artística e, sim, aos temas abordados. Ninguém dizia que a novela era ruim, mal escrita ou mal realizada. Diziam que a vida estava muito difícil e que preferiam uma diversão mais leve. Esta parcela do público dizia não querer assistir aos mesmos assuntos tratados pelo noticiário (a sinopse foi escrita em 2013; fomos premonitórios, na época não havia Petrolão nem Lava-Jato), tampouco ver o beijo gay de Teresa [Fernanda Montenegro] e Estela [Nathalia Timberg], pois eles não poderiam assistir à novela com filhos pequenos, e consideravam mal exemplo para os jovens a trama que mostrava o cafetão seduzindo a ingênua moça de família classe média.
A temática afastou uma parcela pequena da audiência, mas que fez a diferença para a novela não atingisse os mesmos índices da antecessora.
Na sua opinião, por que Babilônia não foi um grande sucesso (vamos combinar que também não foi um fracasso...)?
Como alguém pode chamar de fracasso o programa mais assistido da televisão brasileira atualmente? Perdemos umas cinco ou seis vezes na época da estreia de I Love Paraisópolis, que é uma ótima novela. Já aconteceu dezenas de vezes um capítulo ou outro de uma novela das 19h ter mais audiência que a novela das 21h. Não há nada de inédito nisso.
Após essa oscilação, nunca mais perdemos a liderança. Mas manchetes negativas chamam mais a atenção. A repercussão positiva do público e nas redes sociais sempre foi muito maior do que comentários negativos.
No conjunto da obra, Babilônia foi o programa mais assistido da TV no período. Nossos números seriam considerados espetaculares em qualquer país civilizado, onde há pulverização da audiência. No Brasil, ainda persiste o hábito de uma novela atingir o público de 8 a 80 anos, de todas as camadas socioculturais. Acho que isso será cada vez mais difícil. Na minha opinião, a segmentação é a nova realidade da TV. Crianças assistem às novelas infantis; para quem procura escapismo há tramas fantasiosas; quem curte documentários e programas jornalísticos os encontra em canais temáticos. A segmentação acontece em todo o mundo. É normal e saudável.
Você se arrepende de ter atendido aos desejos manifestados por telespectadoras nos grupos de discussão? Babilônia seria muito diferente se não fossem essas mudanças? Hoje, olhando em perspectiva, você acha que a audiência poderia ter sido melhor sem as alterações?
Todo programa de TV pertence ao produtor. A novela não é do autor da sinopse. É da emissora. Da mesma forma, no cinema comercial a palavra final é do produtor do filme, não é do diretor ou do roteirista. O novelista não é dono da obra, embora muitos não assumam isso publicamente, talvez por questão de vaidade.
Se houvesse a figura do showrunner [principal produtor e/ou criador e/ou roteirista de uma série] na TV brasileira, esse quadro poderia ser diferente. Mas não há. E, mesmo que houvesse num seriado ou minissérie, seria muito difícil numa telenovela pelas dimensões do programa. Na novela das 21h, são 35 páginas por capítulo, de seis a oito meses no ar. É uma obra aberta e coletiva sujeita a todo o tipo de influência. Em Babilônia, nós cumprimos todas as determinações do produtor.
Jussie Smollett e Rafael de La Fuente se beijam na estreia de Empire (Reprodução/Fox)
Você diria que os autores de Babilônia tentaram inovar, mas que o público de telenovela continua muito conservador, ainda quer mocinha e mocinho puros?
Há um seriado americano badalado chamado Empire. Faz sucesso nos Estados Unidos, mas seus números seriam considerados um fiasco no Brasil. Lá, vai ao ar na Fox, TV aberta. No primeiro episódio, há um beijo gay, tratado com naturalidade. No segundo episódio, há cena de cama entre dois homens.
Em How To Get Away With Murder, também exibido na TV aberta americana, um dos protagonistas é gay, e não faltam cenas de beijo e transa com seus parceiros. Aliás, a protagonista é negra.
O elenco de Empire é majoritariamente negro, e o pano de fundo da trama é o hip hop. Será que faria sucesso no horário nobre da TV aberta brasileira? Já imaginou um programa semelhante só com atores negros e falando de funk às 21h?
A TV aberta brasileira está defasada. O público brasileiro é conservador. Não é por isso que devemos ter medo de ousar. Eu acho que a telenovela deve entreter, mas a história deve também propor a discussão de temas importantes, refletindo o momento que a sociedade vive. A temática forte misturando corrupção, religiosidade, hipocrisia, gays, prostituição e racismo incomodou uma parcela pequena mas ruidosa do público. Porém, foi aprovada pela maioria.
Curtir ou não um folhetim é uma coisa subjetiva, que depende do gosto de cada um. Mas é importante não confundir audiência com qualidade. Senão, Chaves seria uma obra-prima. Nós tivemos um julgamento moral, como se o tema pudesse abalar os valores tradicionais familiares, não tivemos rejeição artística. Em meio a tantas polêmicas, Babilônia foi marcante. Mas, no frigir dos ovos, uma novela é apenas uma novela.
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