REPORTAGEM
Fábio Rocha/TV Globo
Gabz em cena de Mania de Você em que Viola sofreu derrocada; novela não passa verdade ao público
No primeiro capítulo de Mania de Você, levado ao ar pela Globo em 9 de setembro, da janela do ônibus Mavi vê Viola fazendo acrobacias circenses no trânsito do Rio de Janeiro e se encanta pela menina, então com 12 anos. O tempo passa e Mavi, agora um hacker a serviço do crime organizado, impede que Viola seja estuprada. Já na cena seguinte, ele pede a moça em namoro. Ela responde que é "maluquice" e sai andando. "Cada uma...", resmunga. Ele vai atrás. "Estou apaixonado por você", confessa após vigiar o sono de Viola durante a noite toda, debaixo de um viaduto. "Mas eu não tô", rebate ela.
Nascia aí a obsessão de Mavi por Viola e a novela das nove mais flopada dos 60 anos da Globo. Até o capítulo exibido em 12 de dezembro, Mania de Você tinha média de 21,5 pontos na medição feita pela Kantar Ibope na Grande São Paulo (no painel nacional, está um pouco pior: 21,3). A marca é 16% menor do que sua antecessora, o remake de Renascer (25,6 pontos). E é quase a metade de Avenida Brasil (37,1), de 2012, maior sucesso do autor de Mania de Você, João Emanuel Carneiro.
Em muitos dias, Mania de Você não chega a superar a casa dos 20 pontos. Já houve capítulo que deu menos audiência do que os das novelas das seis e das sete, o que evidencia se tratar de um problema mais do produto e menos do gênero. Em seu horário, a Globo tem sido sintonizada por 36% dos televisores ligados (share). É muito pouco para uma emissora que já teve 100% da sintonia e cujas novelas davam mais de 50 pontos há apenas duas décadas.
Muitos foram os problemas apontados em Mania de Você. Excesso de vilania, mocinhos vacilantes, personagens mal construídos, narrativa acelerada e confusa, cortes na ilha de edição para tentar mudar o que já estava feito...
Mas o principal, concordam especialistas no assunto, é a falta de história. Mania de Você se resume à obsessão de Mavi (Chay Suede) por Viola (Gabz) e suas consequências nas trajetórias de Luma (Agatha Moreira) e Rudá (Nicolas Prattes). É muito pouco para prender um telespectador que tem cada vez mais opções de entretenimento doméstico.
"Quem é que aprovou essa sinopse? Pelo amor de Deus, que sinopse é essa?", questiona o pesquisador e crítico de TV Nilson Xavier, editor do site Teledramaturgia. "O que foi que aconteceu com João Emanuel Carneiro? O que leva um autor como ele a criar uma história com um ponto de partida tão sem graça como é o de Mania de Você?", continua. E prossegue:
É muito sem graça a história desses quatro jovens personagens [Mavi, Viola, Luma e Rudá]. Não tem apelo. A novela vem empacotada, a fotografia é bonita, a direção é interessante, o elenco é bonito, e as paisagens são bonitas. Mas essa beleza estética não rende novela. O que rende novela é uma boa história. E Todas as Flores [2022, de João Emanuel Carneiro] tinha isso. Então a pergunta é: O que aconteceu com João Emanuel Carneiro? Será que ele está ali só cumprindo o contrato para poder manter o apartamento?
O autor Silvio de Abreu, que foi diretor de Teledramaturgia da Globo entre 2014 e 2020, concorda com o diagnóstico. "Atualmente, o que as novelas não têm é uma história. Elas têm cenas. Não tem uma história que engancha, que vai engatando uma cena na outra, que vai formando uma curiosidade, uma cadeia, uma emoção, e que você não pode deixar de assistir amanhã. Isso não tem mais", sentencia.
Doutor em Teledramaturgia pela USP (Universidade de São Paulo) e autor, entre outros, do livro A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil, Mauro Alencar aponta mais dois aspectos que contribuem para entender a rejeição a Mania de Você: inverossimilhança e falta de representatividade no elenco de quem assiste à novela, que são pessoas maduras (segundo dados da Kantar Ibope, dois terços da audiência têm mais de 35 anos; um terço, mais de 60).
"Em que pese passagens inverossímeis para uma trama que se propõe realista, ainda mais no horário das nove da noite, em que não se costuma admitir 'deslizes' inventivos, o quarteto central é jovem demais para um país (e um mundo) que está cada vez ganhando mais idade. Isso é excelente, claro! E significa que estamos ampliando nossa qualidade de vida! Então, que se façam produtos alinhados com o público consumidor em uma realidade social, como, há que se registrar, sempre fizeram", pontua Alencar.
REPRODUçÃO/TV GLobo
O personagem Mavi no primeiro capítulo de Mania de Você: obsessão à toa
Boa parte dos problemas de Mania de Você são consequência das decisões que levaram à maior transformação da história da Globo, que agora se vende como uma empresa media tech, não apenas de mídia, mas também de tecnologia. Desde 2018, a Globo vem fundindo áreas e reduzindo custos. Demitiu centenas de atores, roteiristas e diretores dos quais antes não abria mão, pois eram os melhores do mercado. O resultado, diz Silvio de Abreu, é que hoje a Globo apresenta uma produção "amadora".
"Quando uma empresa como a Globo manda embora todo o seu estafe e só contrata gente que está começando, o resultado só pode ser amador", afirma o dramaturgo. "É o que está acontecendo. Por quê? Como era a TV Globo? A Globo era como uma grande universidade, um aprendia com o outro. Desde que ela começou, em 1965, as pessoas foram repassando o seu conhecimento umas para as outras. Eu aprendi com o Cassiano [Gabus Mendes], com a Janete Clair. O Gilberto Braga aprendeu com a Janete Clair. O Carlos Lombardi e o João Emanuel Carneiro aprenderam comigo", conta.
Além de quebrar essa correia de transmissão, a Globo mudou o processo de fazer ficção, visando reduzir custos. Nos anos em que comandou as novelas, séries e programa de humor da emissora, Abreu realizava, ele próprio ou algum autor de sua confiança, uma supervisão de texto.
Todo capítulo era lido por um profissional experiente antes de seguir para a produção. Hoje, o departamento de Teledramaturgia é liderado por um diretor, José Luiz Villamarim, que tem mais afinidade com o set de gravação do que com a sala de roteiro. Foi ele quem aprovou a sinopse de Mania de Você junto a seus superiores (Amauri Soares, diretor-geral dos Estúdios Globo, e Paulo Marinho, diretor-presidente).
"A gente tinha uma curadoria de texto que lia todos os capítulos e opinava sobre aquilo. Não é que interferia para mudar. Opinava quando via algum ruído que poderia provocar alguma coisa errada dentro da narrativa da novela. E hoje não tem mais isso. As pessoas entregam os capítulos e [a Globo] só verifica se tem alguma coisa politicamente incorreta. Então, tem muito mais uma censura sobre o que é ou não apropriado se dizer para não ofender fulano, sicrano, beltrano ou essa ou aquela religião ou etnia. Mas não tem um acompanhamento de dramaturgia", protesta Abreu.
E esse acompanhamento de dramaturgia é essencial, porque muitas vezes você tem um autor experiente como o João Emanuel Carneiro, de comprovado talento, e ele pega caminhos errados, como pegou, e aí não tem conserto, a não ser que você tenha uma curadoria especializada pra dizer: 'Tá errado aqui, tá certo ali, vamos por aqui ou vamos por ali'. Não é que essa pessoa sabe mais. É que essa pessoa, não estando envolvida com o processo criativo, terá uma visão muito mais clara. O autor não vai saber ver o seu erro"
"Eu digo porque passei por isso muitas vezes e, graças a Deus, eu tinha o Gilberto Braga, tinha o Daniel Filho, tinha gente que sabia ler e falava: 'Oh, você tá indo errado por esse caminho, vamos por ali’. Eu ia. E fiz isso com muitos autores, fiz isso com o Walcyr [Carrasco], fiz isso com a Gloria Perez. Fiz isso com todos os autores com quem eu trabalhei lá, era a minha função, né? Não estou falando que resolveria o caso, mas que essa pessoa deveria existir", explica Abreu.
Para o novelista, João Emanuel Carneiro "pegou o caminho errado e não tem volta". Não há como salvar Mania de Você. O grande erro, analisa, foi apostar em um crime que dividiria a primeira da segunda fase, o assassinato de Molina (Rodrigo Lombardi), envolvendo na cena os quatro protagonistas jovens.
"Ele [Carneiro] armou aquele crime de maneira completamente inverossímil, as pessoas não acreditaram. Os personagens tomaram atitudes erradas, o mocinho fugiu, a mocinha não denunciou o vilão, não houve conflito, logo não ia resultar em nada, estava errado como narrativa. E essa história de fazer novela em que todo mundo muda o tempo todo não funciona. As pessoas não mudam assim, a pessoa pode mudar de atitude, mas tem que ter uma razão para isso", diz.
"O telespectador tem que se identificar com o personagem, ou para gostar ou para não gostar, mas ele tem que acreditar naquela pessoa. Colocar personagens que às vezes são bons, às vezes são ruins [não funciona]. Isso não é humano. Não sendo humano, não é crível. Não sendo crível, eu não tenho porque assistir", finaliza o veterano.
A Globo não divulga quanto gasta por capítulo, e as estimativas variam conforme os critérios utilizados. Segundo um executivo que pediu para não ser identificado, o custo está hoje em pouco mais de R$ 1 milhão por capítulo. Parece muito, mas não é. Há dez anos, a Globo já gastava R$ 800 mil, de acordo com Silvio de Abreu, o equivalente a R$ 1,4 milhão na atualização pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo).
O remake de Pantanal, em 2022, estourou um orçamento de R$ 250 milhões (R$ 1,5 milhão por episódio). As novelas que vieram depois sofreram um grande aperto no orçamento. Não tiveram a mesma licença para gastar. Não à toa, Pantanal é considerada a última "superprodução" da emissora.
"Hoje tudo é inferior ao que era feito anteriormente", observa Silvio de Abreu. Com exceção à novela das nove, os cenários são mais pobres do que os das produções das concorrentes, aponta.
"Você não vê cena externa, quase não tem. É tudo dentro de um cenário, é tudo na cidade cenográfica, que são muito inferiores às que a gente tinha antes. E os cenários em si são de novelinha de quinta categoria, porque são apenas paredes. A iluminação é a chapada, não tem nenhum estudo maior de iluminação, é tudo muito lavado, então você não tem um degradê para criar um clima. Os figurinos são muito simplesinhos, triviais", critica Abreu.
A redução de custos afetou um componente central das novelas: o elenco. A Globo abriu mão de seu "star system", deixou livres no mercado centenas de profissionais que antes eram exclusivos dela. Hoje, é mais difícil escalar suas produções. Murilo Benício, por exemplo, não aceitou o cachê oferecido para interpretar Molina em Mania de Você. O resultado dessa política, aponta Nilson Xavier, são atores que deveriam estar fazendo teatro ou Malhação (interrompida em 2020, depois de 27 temporadas) sendo testados como protagonistas no horário nobre.
"A gente não reconhece mais as novelas da Globo", diz o crítico e pesquisador. "A Globo se construiu em cima de atores que vinham do teatro, atores que já eram consagrados. Depois veio a Malhação, mas os atores dessa escola já não têm mais o mesmo apelo. Foi ruim acabar com a Malhação? Eu diria que, com o fim de Malhação, os atores que estariam em Malhação estão nas novelas, ocupando o espaço daqueles que tiveram seus contratos rescindidos. Então você vê a Globo lançando a cada novela um novo protagonista que a gente nunca ouviu falar."
Na opinião de Mauro Alencar, isso tem afetado a audiência das novelas. "Chama a atenção o relançamento de Tieta quase como se fosse um produto inédito! Mas também, pudera! Você reparou no elenco? Absolutamente estelar, o público tinha uma relação completamente afetiva com seus atores. E isso provocava um engajamento natural. O que quero dizer é que a maneira mais eficaz de você 'lacrar' (preciso usar o termo), ou tornar a sua mensagem mais eficaz, é contando com naturalidade uma boa história, bem produzida, com bom elenco e trilha musical", analisa.
A Globo teve que cortar custos de maneira dramática porque o cenário da mídia nacional mudou muito nas últimas décadas. Primeiro, na virada dos anos 1990 para os 2000, ela passou a ter a concorrência da TV por assinatura. Nos últimos 20 anos, as plataformas digitais e o streaming pulverizaram ainda mais a audiência e as verbas de publicidade.
Hoje, a Globo detém pouco mais de um terço do consumo de vídeo dentro dos domicílios, seja ele em televisores, celulares, tablets ou computadores. Seu maior concorrente é o YouTube, com 18% de participação, de acordo com a Kantar Ibope. Os balanços contábeis da Globo registram que há dez anos a emissora não consegue superar a barreira dos R$ 16,2 bilhões de faturamento anual. Em termos reais, considerada a inflação, as receitas da Globo teriam de ser hoje de R$ 28,5 bilhões para manter o nível de dez anos atrás. Logo, toda a reestruturação pela qual passou foi importante para continuar lucrativa.
Apesar desse cenário pessimista, os especialistas ouvidos nesta reportagem não enxergam um apocalipse das telenovelas. Silvio de Abreu lembra que a audiência não é completamente mensurada, pois os números da Kantar Ibope só refletem o consumo em tempo real ou até sete dias depois. E não capta o que se vê nas redes sociais, em cortes de vídeo. Mauro Alencar diz que o interesse do streaming no formato é prova de que ele segue vivo:
"Observo que o gênero telenovela precisa realinhar-se à Quarta Revolução Industrial. Eu não posso produzir um produto que não esteja em sintonia com os desejos, a carência e as necessidades do público de um determinado tempo e espaço. Falamos aqui de emoção, de temas que podem contribuir para a elucidação psicossocial. Então, ainda que a telenovela não seja mais a tribuna do passado nem paute os temas do cotidiano (impossível em tempos tão fragmentados), ela segue alimentando a mídia em plataformas cada vez mais distintas", diz o acadêmico.
"Acredito que muito dessa inconstância e desse desequilíbrio que tomou conta de nosso 'ainda' principal produto audiovisual é uma falta de sintonia com as premissas dessa nova era da comunicação. Não vejo isso, por exemplo, na Coreia do Sul. Enfim, é preciso reavaliar o produto telenovela à luz das ciências humanas e em um novo contexto midiático, no qual a sociedade em rede e o espectador têm cada vez mais voz e também escrevem essa história como agente consumidor."
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