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REPORTAGEM

Roteiristas trans sofrem com 'uberização' e falta de trabalho após bolha do streaming

Adriana Spacca/Notícias da TV

O roteirista Éri Sarmet, que tem curtas premiados, mas não consegue trabalhos na TV: "Invisibilidade"

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DANIEL CASTRO

dcastro@noticiasdatv.com

Publicado em 22/12/2024 - 8h10

Considerada a primeira roteirista trans da TV brasileira, a dramaturga Luh Maza, de 37 anos, está há um ano e nove meses sem escrever para programas de TV. Éri Sarmet, de 34, mesmo com experiência e até doutorado na área, não se sustenta com roteiro. Rastricinha Dorneles, de 32, que preside a APTA (Associação de Profissionais Trans do Audiovisual), nem sonha com trabalho em televisão. Garante seu sustento como cartomante.

Essa é a dura realidade de roteiristas trans no mercado audiovisual nacional. Segundo mapeamento realizado pela Abra (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), a precariedade é uma marca da profissão. Na média do mercado, 41,4% dos roteiristas não ganharam nada ou receberam pouco mais de um salário mínimo mensal produzindo roteiros ao longo do último ano. Entre os profissionais trans, esse percentual quase dobra (73%).

A profissão passa por uma "uberização". Roteiristas que escrevem séries, novelas e programas de TV cada vez mais atuam como autônomos. De acordo com o levantamento da Abra, feito junto a 559 associados, 71% não recebem benefícios trabalhistas e 32% têm um segundo emprego por absoluta necessidade. Só 27,5% vivem exclusivamente de roteiros.

A vida para os 22 associados (4%) da Abra que se identificam como trans, travestis ou não-binários é ainda mais dura. "Existe um componente de transfobia", denuncia Éri Sarmet, que já sofreu de ansiedade diante da possibilidade de não conseguir pagar suas contas. Se dependesse apenas de roteiro, ele não conseguiria, pois a atividade só lhe rendeu o equivalente a R$ 1.800 por mês neste ano.

Éri ganha a vida como consultor e professor de roteiro numa pós-graduação. Ele também produz filmes independentes, financiados por editais públicos. Dirigiu três curtas e é sócio da Excesso Filmes, produtora que só neste ano ganhou 18 prêmios em festivais no Brasil e no exterior.

Éri sente que há uma barreira intransponível para entrar na TV. Em 2017, ele escreveu a série Transviar, uma produção independente de Manaus exibida pela TV Brasil em 2020, a primeira protagonizada por um homem trans. Trabalhou em outros três projetos de séries para o streaming, mas nenhum deles vingou. Não participa de uma sala de roteiro desde 2019, há mais de cinco anos. "O boom dos streamings na pandemia não aconteceu para pessoas transmasculinas", constata.

Sarmet sempre esteve ligado a produtoras independentes, em projetos temporários. "Nunca me chamaram para trabalhar na televisão. Já tive algumas reuniões com alguns canais e algumas produtoras, que queriam me conhecer e tal, mas nada foi pra frente", conta. "Eu acho que tem, claro, um componente de transfobia. Eu transicionei em 2021. Antes, me identificava como uma mulher lésbica. Tem também todo um preconceito em torno disso", diz ele, agora uma pessoa não-binária transmasculina.

Segundo Éri, as emissoras e plataformas de streaming têm uma visão limitada da capacidade de profissionais trans, só os procurando para desenvolver personagens trans, o que retroalimenta a baixa representatividade na tela. Cita uma pesquisa acadêmica que mostrou que não existe nenhum personagem trans masculino em séries brasileiras da Netflix.

Tem um problema do mercado. O mercado só vai em busca de pessoas trans quando tem algum personagem trans. Das pouquíssimas pessoas trans que têm atuado como roteiristas em TVs ou streamings, a grande maioria são mulheres trans ou travestis. E são quantas? Umas quatro ou cinco? Ainda é muito pouco. Existe uma ausência muito forte de homens trans ou pessoas transmasculinas. A gente é muito invisibilizado na sociedade. As pessoas nem sabem que a gente existe.

A consequência, aponta Éri, são narrativas estereotipadas: "Tem um estereótipo muito comum que eu vejo em filmes que é a narrativa em torno da revelação da pessoa ser trans. O foco na história é o fato de que a pessoa trans vai revelar que é trans pra alguém, em vez de focar em qualquer outro conflito que possa existir a uma pessoa trans". Outro estereótipo é o da pessoa trans em situação de miséria e pobreza.

Bolha do streaming abriu espaço para trans

O mercado de trabalho para roteiristas trans na TV é relativamente novo. Em 2018, o canal GNT procurava um profissional com essa característica para a série Sessão de Terapia. Luh Maza, que já tinha uma respeitável trajetória no teatro, conquistou a vaga, se tornando a primeira mulher trans a escrever uma série de TV no país. O personagem trans que ela desenvolveria acabou caindo, mas Luh foi mantida na equipe e elaborou as falas de um homem cis negro.

Depois de Sessão de Terapia, Luh trabalhou em mais quatro projetos importantes: De Volta aos 15 (2022-2024) e Os Quatro da Candelária (2024), na Netflix; a série Da Ponte pra Lá (2024), na Max, da qual também dirigiu dois episódios; e o filme Insubmissas (2024).

Apesar de quase todos esses trabalhos só terem sido lançados neste ano, a missão de Luh neles acabou bem antes, há um ano e nove meses. Seu último trabalho no mercado "comercial" foi como chefe da equipe que adaptou o livro Torto Arado para a Max. A série, que seria dirigida por Heitor Dhalia, não recebeu "luz verde" por razões orçamentárias, frustrando uma oportunidade ímpar de Luh mostrar que roteiristas trans não se limitam a fazer dramaturgia sobre pessoas trans, podem criar sobre qualquer ser humano.

Luh Maza faz parte de uma geração de roteiristas mulheres trans e travestis respeitadas profissionalmente, como Alice Marcone e Chica Andrade. Além disso, é muito requisitada no mercado de filmes publicitários. Ela não vive de salário mínimo, como a maioria dos roteiristas trans. Mas, mesmo assim, enfrenta dificuldade. Ela não quis dar entrevista.

Luh e outros roteiristas trans se beneficiaram de uma janela do mercado durante a pandemia, quando o streaming decidiu investir pesado na produção de conteúdo, abrindo espaço para novas narrativas e narradores. Mas essa bolha explodiu e, desde 2022, roteiristas trans deixaram de ser úteis para a "diversidade" e enfrentam um mercado mais restritivo.

Paralelamente, as empresas de audiovisual ficaram mais temerosas com a ofensiva anti-woke, buscando "neutralidade". A Globo, por exemplo, tem uma política de cotas para atores e autores negros em suas produções, mas quase não há personagens e roteiristas trans. Uma rara exceção é Hela Santana, que trabalhou em textos da novela Elas Por Elas (2023) e da série Encantado's.

Roteirista pede pix para comprar comida

Rastricinha Dorneles, que preside associação 

Hela é uma das poucas profissionais que sabem o que é ter carteira assinada e um trabalho fixo. Presidenta da APTA, Rastricinha Dorneles diz que a realidade de alguns roteiristas imita o clichê da pessoa trans miserável da ficção. A APTA foi criada em 2018 para "promover formação para empresas de audiovisual de como nos contratar e impactar o mercado para receber a nossa cinematografia e reconhecer sua importância".

Com cerca de 200 associados, a entidade tem um grupo de WhatsApp em que divulga oportunidades de emprego, quase sempre em funções de assistência no set. E já houve caso de gente que pediu pix para poder comer.

"A nossa realidade enquanto comunidade trans é muito mais conseguir construir um ambiente seguro do que intervir numa Netflix e fazer com que eu entre como roteirista júnior. A gente vai muito mais criar oportunidade pra camareiras, pra gaffer [eletricista], pra continuístas, do que garantir que uma direção aconteça. É difícil lutar pelo cargo de direção se tem gente pedindo comida", expõe Rastricinha.

Ela própria teve poucas oportunidades. Neste ano, ganhou R$ 12 mil como roteirista de um filme e um curta, menos de um salário mínimo por mês. "Eu vivo de cartomancia. Sou cartomante há muitos anos e entendo que a cartomancia é um produto meu enquanto produtora, contadora de histórias. Eu não lido com a cartomancia como um lugar oracular, eu lido como um lugar de contação de história. E tiro com a cartomancia uns R$ 3 mil por mês", conta.

Rastricinha também atua como produtora independente e "hackeia o sistema" disputando verbas de editais e, assim, financiando suas obras, como o curta Parla Italiano, que se prepara para dirigir. "A gente investe em sonho", justifica.

Para ela, trabalhar na televisão "está muito distante", mas vai chegar o dia, talvez daqui 20 anos, que uma novela será escrita, dirigida e protagonizada por pessoas trans. "É a história que ainda não foi contada", profetiza Rastricinha.


O Mapeamento Abra 2024, um documento com 51 páginas e muita informação, está disponível neste link.

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