CESAR CAVALCANTE
FOTOS: REPRODUÇÃO/INSTAGRAM
Cesar Cavalcante após terminar sua última sessão de quimioterapia: foram seis meses de tratamento
Cesar Cavalcante tem uma rotina corrida desde que se entende por gente. Horas de transporte público para chegar ao trabalho, coberturas intensas –em que ele só encontra tempo para comer um salgado, entre uma entrevista e outra– e uma vida na Redação noturna da Band lhe geraram isso. Mas, um dia, tudo mudou. O jornalista descobriu estar com um câncer no estômago, que o obrigou a desacelerar e repensar tudo. Inclusive o trabalho.
Ele não abandonou a Redação totalmente, até por recomendação médica (precisava manter a cabeça ocupada), mas aderiu mais ao trabalho remoto. Cada ciclo de quimioterapia, com cerca de duas semanas de duração, fazia com que ele deixasse as reportagens de lado e focasse em si.
Foi então que ele reparou que a própria história, no fim, também era pauta. Conversou com os colegas da emissora e transformou seu tratamento em uma série de reportagens especiais, nomeada Câncer: Virei Paciente, que demorou seis meses para ser produzida.
"Eu acho que passei alguns dias refletindo sobre aquilo. Sabia que teria que mexer novamente no meu diagnóstico, em todas aquelas informações que são sensíveis... Tive medo no começo, mas depois aquilo começou a se tornar muito tranquilo; começou a fazer mais sentido para mim”, conta Cavalcante em entrevista exclusiva ao Notícias da TV.
A ideia da produção, contudo, não veio do repórter, mas sim de Rodolfo Schneider, diretor-geral de conteúdo da Band. Cavalcante pretendia apenas fazer um anúncio público, até para explicar por que sua imagem estava mudando tanto em suas aparições mais recentes em frente à câmera.
A série o assustou, mas também o fez descobrir um novo objetivo de vida: usar o espaço que tem no horário nobre da TV aberta para fomentar discussões sobre o câncer que, muitas vezes, são deixadas de lado.
"O câncer é um tabu. Ele é difícil, e muita gente acaba se afastando pelo medo de falar sobre o assunto, né? Tem gente do nosso país que nem fala a palavra 'câncer'; como se, ao falar, você fosse ter um câncer no dia seguinte", lembra.
"Então, a gente teve esse preocupação: fazer um material de qualidade, mas que fosse ser assistido. Como fazer isso? Afastando o sentimento terrível que as pessoas têm sobre o câncer. A gente usou como ponto de vista que ele não é mais uma sentença de morte."
Eu estou em remissão hoje, mas eu vejo que eu tenho uma missão. O câncer acomete 700 mil brasileiros todos os anos. Na virada dos anos 2000, eram 400 mil pessoas. Veja como aumentou. Claro, há um aumento de diagnósticos porque as pessoas estão fazendo mais exames, mas os hábitos do nosso dia a dia --o sedentarismo, o tabagismo-- nos afetam. Por isso, é importante falar sobre o assunto.
Se o tema é complexo por si só, ele se tornava ainda mais pesado para o repórter em momentos de dor. Afinal, além dos ciclos de quimio, muitas vezes ele não se sentia bem nem para trabalhar.
"Em alguns momentos, eu estava tão abatido pela medicação que eu não conseguia sentar na frente do computador para escrever uma matéria ou fazer uma entrevista em vídeo. Porque tudo era doloroso, todas as sensações. A luz no meu rosto, a fraqueza... Os sons também me incomodavam bastante... Às vezes eu saía para fazer uma reportagem, me sentia indisposto e tinha que voltar para casa."
Cavalcante nas gravações de Câncer: Virei Paciente
Ele também tinha outras demandas diárias, reportagens mais simples que fazia para o Jornal da Band. Ao mesmo tempo, procurava por mais pacientes e decidia como ia abordar um tema tão caro para ele. O repórter confessa que teve a ajuda de outras pessoas; mas, ao mesmo tempo, tinha de lidar com a autonomia que lhe foi dada para a série.
Uma das questões era impedir que o público "fugisse" das matérias, como já mencionado. Outra era entender quais temas precisavam ser abordados, e como ele os resumiria em matérias com menos de cinco minutos.
"Quando a gente fala sobre câncer, está falando sobre algo que pode ter muitas abordagens. Talvez a principal dela seja o estímulo ao diagnóstico precoce, mas a gente também queria falar com quem já tinha descoberto a doença. Então, foi uma série feita com carinho para quem é paciente. A gente falou bastante sobre superação. Compartilhamos histórias inspiradoras de pessoas que tinham passado pelo câncer, ou que estavam em tratamento, e como elas fizeram para processar tudo aquilo."
Com o tempo, as coisas se ajustaram na vida do jornalista. As matérias foram ao ar, e o repórter recebeu uma série de mensagens nas redes sociais. A maioria lhe desejou melhoras, disse estar torcendo por sua recuperação e elogiou a produção da reportagem. Mas um recado em específico lhe tocou, pois foi uma troca de papéis que ele nunca imaginou viver.
Tratava-se de uma antiga entrevistada, que conversou com ele para uma matéria sobre a lei dos 60 dias --na qual um paciente com câncer precisa, obrigatoriamente, começar seu tratamento dentro desse período de tempo.
O Sistema Único de Saúde (SUS) precisa dar essa garantia, e isso não aconteceu com a paciente em questão. Ela foi diagnosticada com câncer de mama metástico e, até o momento em que deu a entrevista, não havia iniciado o tratamento.
Cavalcante redige roteiro de matéria, há cerca de quatro anos
Anos se passaram. Ela se tratou, e ele foi diagnosticado. O profissional procurou a mulher em sua lista de contatos e desabafou com ela. A mulher foi sucinta: "Você foi uma pessoa parceira nesse tema, mas agora você está fazendo parte dessa causa. Seja bem-vindo", acolheu ela.
Os dois costumam se falar com frequência desde então. Compartilham questões que só quem é paciente pode entender e participam juntos de rodas de oração. Ao mesmo tempo, o jornalista está num grupo com pacientes que, assim como ele, retiraram o estômago. Ali, compartilham sentimentos e dicas de adaptação --como a importância de triturar bem os alimentos.
Cesar Cavalcante parece ter tudo sob controle agora. Sentado em seu escritório num apartamento em São Paulo, com objetos de decoração minuciosamente organizados em prateleiras, a cor de volta a seu rosto e com mais peso do que à época das reportagens, o jornalista parece nunca ter passado pelo que passou.
Só que as lembranças ainda estão ali, e ele chega a mudar o semblante quando é questionado sobre o dia em que recebeu o diagnóstico, 30 de janeiro. "Nunca gostei de abrir exames, e também não abri aquele", conta, em referência a uma endoscopia realizada por rotina.
"Eu pedi para a minha cunhada [Sarah Bálint, irmã de Paulo Bálint, namorado de Cesar] abrir, mas ela não me dizia o que estava escrito. Eu perguntei algumas vezes, mas não tive coragem de pegar o papel da mão dela e ler. Ela só disse que não estava entendendo. Eu disse que ia fazer algumas coisa e, quando ela entendesse, poderia me contar."
Ela não me contou na hora, mas ligou para uma médica no momento em que eu virei as costas e leu o exame para ela. [Disse:] 'Olha, o que está escrito é o que eu estou pensando? Ele realmente tem câncer?'. A médica confirmou, e ela contou para mim. Eu senti o chão cair debaixo dos meus pés. Não sabia o que fazer, não sabia como seria daqui para frente. Corri para o hospital para fazer novos exames e tentar me acalmar.
No dia seguinte, o jornalista conseguiu contatar o cirurgião que o acompanhou até o fim do tratamento, Jorge Nahas. "Olha, vamos encarar. É um diagnóstico difícil, mas, pelo que eu tenho aqui de informações, é passível de cura", disse o médico.
O rapaz tentou se acalmar ao máximo e seguiu o protocolo. Encontrou um oncologista, Marcelo Calil, e descobriu que teria de fazer a cirurgia de retirada do estomâgo, além das quimioterapias. Só então ele respirou mais fundo.
Cesar Cavalcante e o namorado, Paulo Bálint
A família sofreu junto durante todo esse tempo. Paulo, namorado do repórter, chorou o dia inteiro. No dia seguinte, porém, ele percebeu que teria de ser firme e dar apoio ao amado. A mãe saiu correndo de Deodápolis, Mato Grosso do Sul, para apoiá-lo no tratamento em São Paulo, e o resto da família lhe consolava à distância. Os amigos também costumavam acompanhá-lo nas sessões de quimioterapia.
A notícia mudou não só a rotina familiar, mas também a vida profissional do repórter. "Eu poderia me afastar totalmente, mas não quis", reiterou ele. Sair da correria só deixaria sua cabeça mais livre para pensar na possibilidade de os tratamentos não funcionarem. E, acima de tudo, ele gostava do que fazia.
O paulistano sempre soube que queria trabalhar com Jornalismo. Adorava se comunicar --principalmente quando ia ao trabalho dos pais, feirantes-- e era viciado em televisão. Se tivesse de escolher entre ficar na rua com as outras crianças e assistir a um telejornal ou a um programa de auditório, escolheria a segunda opção. Ficava encantado por todo o universo das câmeras, das luzes e da interação dos apresentadores.
Mas ele não caiu na área tão rápido assim. Seu primeiro emprego foi com vendas, numa loja de relógios, aos 16 anos. Trabalhava apenas quatro horas diárias, sob o regime de Jovem Aprendiz, mas ainda cursava o Ensino Médio e fazia um curso técnico, tudo ao mesmo tempo. A correria cobrou seu preço: teve um surto de exaustão, com direito a apagar no trem de volta para casa e ser colocado numa cadeira de rodas pelas seguranças.
Os pais, que ainda moravam em São Paulo, mandaram o adolescente passar um período em Deodápolis com os avós. Foi lá que ele escavou seu primeiro emprego em Jornalismo. Depois de recuperado, bateu na porta da única emissora de rádio da cidade (da Rede Transamérica, que levava o mesmo nome, e agora se chama Jota) e pediu um emprego. Foi aceito na hora.
Ele gravava boletins, especialmente com informações de ordem mais prática (como trânsito, buracos na rua e vias interditadas), mas sentia que já estava pronto para fazer mais. Prestou vestibular e foi aprovado na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O aspirante a repórter se mudou para a cidade sem saber como iria se manter. Tinha um pouco de dinheiro guardado e a ajuda dos pais, mas não era muito. Também continuou escrevendo para o site da rádio em que trabalhava, como forma de fazer um dinheiro extra.
Mas o rapaz logo encontrou um objetivo para batalhar. Nas primeiras semanas de aula, se aproximou de um colega que trabalhava na Band FM. Pediu uma força para que também pudesse ser contratado como estagiário, e o colega lhe deu o contato direto da Redação.
Cavalcante conseguiu uma entrevista na emissora de rádio e até fez um teste, mas não passou de primeira. Recém-chegado ao Rio, não tinha noção suficiente da cidade para descrevê-la em boletins. A entrevistadora informou isso, e ele pediu um tempo para se aprimorar na geografia carioca. Passou a fazer um pequeno boletim todos os dias, no laboratório da faculdade, e encaminhá-lo para a entrevistadora.
Ela já havia contratado outra pessoa, mas ficou tão impressionada com o empenho do rapaz que abriu uma vaga extra para ele. Sua função seria atender aos telefonemas dos ouvintes, que bombavam em 2014. Ricardo Boechat (1952-2019), que comandava o programa no qual Cavalcante estagiava, incentivava o público a mandar recados sobre quase tudo. O aspirante a jornalista filtrava o conteúdo e mostrava as principais mensagens ao âncora.
O rapaz também costumava ligar para a polícia e para outros órgãos oficiais, em busca de algum acontecimento que viria a ser notícia. Com o tempo, se aprimorou e passou a fazer reportagens para a rádio. Ele foi efetivado logo depois e passou quatro anos e três meses trabalhando na rádio.
Mas, em 2017, se sentiu pronto para realizar um sonho antigo: a TV. Não foi fácil --ele admite ter passado pela maior crise de ansiedade de sua vida quando fez seu primeiro ao vivo e se deu conta de que, além das várias pessoas atrás das câmeras, várias outras lhe assistiam de suas casas--, mas era o que ele queria.
Ele começou na TV como repórter policial da madrugada. Basicamente, passava as noites ligando para delegacias e correndo para onde tivesse uma ocorrência, acompanhado apenas de um cinegrafista. No meio dessa rotina, acabou na cena do crime de um dos assassinatos políticos mais lembrados nos últimos 10 anos: o de Marielle Franco (1979-2018).
"A gente tinha recebido a informação de que havia um carro metralhado na Zona Norte do Rio e fomos para lá. Mas, depois, surgiu a informação de que havia um outro carro atacado. Fomos para a Lapa [bairro onde Marielle foi assassinada] porque era mais perto. Chegamos e fomos informados pelo policial militar de que poderia ser uma vereadora. Depois, todo mundo sabe o que aconteceu, né?", diz. "Mais tarde, descobrimos que o outro carro era de um pai tinha sido assassinado na frente do filho."
Esse tipo de tragédia, aliás, era comum naquele trabalho. O jornalista admite ter aprendido a se blindar, mas nunca deixou sua sensibilidade de lado. Mesmo agora, em que não cobre exclusivamente a editoria policial, a sensibilidade ainda faz parte de seu estilo profissional. Hoje, com foco em reportagens sobre saúde --tema que lhe foi tão caro nos últimos tempos--, o repórter exercita ainda mais esse seu lado.
E não só na TV. Desde que fez sua última quimioterapia, 178 dias após o diagnóstico, Cavalcante passa boa parte de seu tempo indo a eventos e palestras sobre câncer. Chegou a dividir uma mesa-redonda com Preta Gil, que enfrenta um tumor no intestino. O objetivo é tratar o assunto com leveza e sem tabus, mas levando as informações que precisam ser levadas.
Hoje, sua maior prioridade é cuidar de si mesmo. "Antes, eu acabava comendo um salgado na rua, porque só me preocupava com a matéria, com o assunto. Hoje, eu me preocupo com a minha alimentação. Faço questão de separar um tempo e consumir o alimento", afirma. Comer só um salgado, nunca mais.
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