ANÁLISE
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Diana (Vanessa Bueno) e Fátima (Mariana Santos) tiveram romance vetado na novela Mania de Você
Em um ano de baixa audiência na televisão, personagens sáficos perderam ainda mais o pouco destaque que tinham. A censura na profundidade das histórias de mulheres que se envolvem com outras mulheres veio à tona mais uma vez em Mania de Você, que teve o romance entre Fátima (Mariana Santos) e Diana (Vanessa Bueno) escanteado para evitar ainda mais a queda dos números do ibope.
Enquanto Fátimas e Dianas foram apagadas da televisão, personagens sáficos ganharam protagonismo e destaque no streaming e na literatura. Entre as produções brasileiras da Netflix, Globoplay, Prime Video e Max, dez obras colocaram mulheres lésbicas, bissexuais e pansexuais para falarem em voz alta neste ano.
A literatura, que frequentemente inspira produções televisivas, se deu bem. Obras como A Luta Pelo o que É Nosso, Canção dos Ossos e Não Somos Melhores Amigas entraram para as listas de livros sáficos mais vendidos da Amazon. O fenômeno mostra o quanto a TV regrediu e ficou careta ao tentar abraçar todos os públicos.
Roteirista de Rensga Hits!, Bia Crespo avaliou que o cenário televisivo atual tropeçou com o que poderia ter sido uma evolução. A escritora participou da criação das personagens Marlene (Deborah Secco) e Helena (Fabiana Karla), que se envolvem amorosamente na série do Globoplay e deram um beijão na segunda temporada.
"[Temos que] focar no que temos em comum ao invés do que temos de diferente. Eu acho que tramas sobre saída do armário são muito específicas sobre a experiência de ser LGBTQIAP+, portanto não criam identificação com o grande público. Já um coração partido, todo mundo teve. Foi essa a lógica que usamos em Rensga Hits!", contou ela ao Notícias da TV.
O mercado audiovisual hoje é tomado pelo medo. Toda a ousadia que vimos dez anos atrás foi substituída por um pânico de afastar a audiência conservadora. Existe um movimento para fazer obras que 'falem com todo mundo', o que, obviamente, é impossível.
"Existe todo tipo de censura, desde a que cerceia as ideias ainda no desenvolvimento dos projetos até aquela que corta cenas de novelas, como vimos no caso de Vai na Fé [2023]. Eu já vendi muitos projetos que tinham o perfil 'para toda a família', mas nunca consegui vender um que tinha protagonismo LGBTQIAP+. A censura às nossas histórias começa na rejeição de emissoras, produtoras e streamings. A maioria dos nossos projetos nem sequer consegue chegar ao público", lamentou Bia.
O consumo de produtos audiovisuais também reflete nas obras literárias. Em um ano com grandes anúncios de adaptações de livros, as histórias sáficas, mais uma vez, foram deixadas para trás. A falta de interesse pelo tema tem a mesma justificativa dada por aqueles que fazem televisão: a rejeição do público é muito maior ao se deparar com o romance entre duas mulheres.
Escritora dos livros sáficos Canção dos Ossos e da duologia Luzes do Norte, best-sellers da Amazon e da Publishnews, a autora Giu Domingues apontou que o público costuma aceitar mais histórias aquileanas --que retratam relacionamentos amorosos entre homens.
"Na Netflix temos Heartstopper, que foi renovado para várias temporadas, enquanto outras séries sáficas foram canceladas. As duas coisas conversam, porque quanto mais séries sáficas você consome, mais alimenta suas referências, e mais você vai conseguir imaginar outras histórias. Eu, por exemplo, cresci com o heteronormativo, com as histórias da Disney das princesas dos anos 2000", explicou ela à reportagem.
"Tento criar personagens que são autênticos e humanos. Não vou ficar pensando 'mas será que eu devo higienizar esse personagem?'. Recentemente, recebi muitos comentários de haters por conta do meu livro. Mas não é para essas pessoas que eu estou falando. Eu falo com os meus leitores, e tem muito mais valor eu falar com um jovem que está sendo excluído do que tentar convencer uma pessoa a não excluir", acrescentou.
Giu pontuou que a falta de profissionais LGBTQIAPN+ em posições de chefia na televisão e no streaming contribuem para a diminuição dessas pautas. A escritora descreveu ainda como a literatura acaba impactada pela censura do audiovisual.
"Nos livros nacionais que são publicados hoje, nós também vemos um declínio em títulos com representatividade sáfica. Há uma volta para a ficção cristã, um conservadorismo pautado pelo o que não vende. Quando falta verba, eu sei que a primeira coisa a ser cortada é o livro sáfico, o escrito por uma pessoa LGBTQIAP+, uma pessoa preta, uma mulher", lamentou.
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