SURRA DE VILÃS
FOTOS: REPRODUÇÃO/TV GLOBO
As malvadas Núbia (Drica Moraes), de Travessia, e Deodora (Debora Bloch), de Mar do Sertão
De 2010 para cá, todas as novelas das nove da Globo tiveram vilãs. Com maior ou menor destaque, como a mente por trás dos crimes ou as executoras deles, as mulheres são protagonistas quando se trata de maldades. Não é por acaso. Embora a figura feminina sempre tenha sido relacionada à crueldade e à manipulação, a ascensão do feminismo nos últimos anos fez com que o mundo temesse as ambiciosas, as que ousam sair do local predeterminado a elas. E isso reflete na TV.
Larissa Leda Rocha, doutora em Comunicação Social e pesquisadora de Artes Cênicas na UFMA (Universidade Federal do Maranhão), destaca que a expansão da vilania feminina se dá mais fortemente a partir de 1990 --justamente o período em que a terceira onda do movimento feminista começou a ser estruturada e disseminada.
De 2010 até agora, esses debates alcançaram níveis nunca antes imaginados graças às redes sociais. Claro que há outros aspectos ligados a isso, como os modos de consumo de ficção, as novas formas de contar histórias e o público que deve consumi-las --dados do Observatório de Ficção Televisiva Ibero-americana, por exemplo, mostram que a audiência das novelas é, em sua maioria, feminina.
Só que nada é mais importante do que como nos organizamos fora das telas e do que é visto como ameaça perante a sociedade daquele tempo. "Reaparece uma pergunta sempre aqui: qual é o mal que nos assombra? O que é monstruoso hoje?", explica a especialista ao Notícias da TV.
Considerando a quantidade de vilãs mulheres, a resposta parece óbvia. E não é um fenômeno exclusivo das telenovelas, muito menos é algo recente. Basta pensar em quem, na narrativa judaico-cristã, é responsável por ceder à tentação da serpente e comer o fruto proibido. Além de, claro, persuadir o homem a fazer o mesmo --à exemplo das mães e amantes manipuladoras da ficção, como Núbia (Drica Moraes) de Travessia e Deodora (Debora Bloch) de Mar do Sertão, só para citar alguns exemplos recentes.
As mulheres são consideradas vis e manipuladoras, é uma pecha negativa que vem de eras atrás. Por consequência, os homens são os inocentes que serão corrompidos pela figura feminina de modo que qualquer passo negativo por parte deles é estruturado em torno de uma narrativa em que a culpa é das mulheres.
"É um pensamento até contraditório se a gente pensa em outros estereótipos de gênero, que colocam os homens como agentes e as mulheres como passivas. No caso da moral essa dinâmica se inverte ou se mistura", afirma Anna Vitória Rocha, jornalista, blogueira e pesquisadora de temas pertinentes ao feminismo.
Até o fato de ser uma figura materna faz parte de um arquétipo bem conhecido. Tão antiga quanto a ideia de uma mãe boa, é a da mãe ruim. Ou a madrasta malvada, parte preponderante dos contos de fadas. Tanto que essa ideia foi alvo de zombaria em Desencantada (2022), da Disney, a principal responsável por se apropriar dessas histórias.
Regina (Mel Lisboa), a vilã de Cara e Coragem
Os amantes loucos de paixão e deslumbrados por uma suposta sensualidade feminina que "enlouquece" os homens também são comuns, à la Regina (Mel Lisboa) e Leonardo (Ícaro Silva) em Cara e Coragem. Um exemplo que remonta a obras da Antiguidade e da Idade Média, como Medeia (431 a.C.), de Eurípides (480 a.C.-406 a.C.), e Macbeth (1616), de William Shakespeare (1564-1616). Como afirma Larissa:
Homens fracos manipulados por mulheres más e fortes é um tema recorrente e não é atual. Vilões têm aliados, assim como os heróis. E o poder de manipular é um dos vários poderes exercidos por vilãs. Há outros e também recorrentes, afinal, uma mulher má é, na narrativa da telenovela brasileira, também uma mulher rica e poderosa. Ela tem poder de ação. Ambição. Desejo tenaz.
Que esse tipo de narrativa tem origem em um passado bem longínquo, é fato. A grande questão é quando elas vão parar de ser contadas. A resposta é simples: enquanto a sociedade for culturalmente pautada na subalternidade das mulheres, tramas assim continuarão fazendo sentido.
Anna Vitória explica que, por mais que algumas estruturas tenham sofrido avanços --como a presença de mulheres no mercado de trabalho ao longo do último século--, as bases culturais são as mesmas de antes. As mulheres podem até trabalhar, mas crenças de que elas são passionais demais ainda estão ali, no inconsciente das pessoas, impedindo que elas alcancem um cargo de chefia que precisa de decisões racionais.
E isso é reproduzido também pelas próprias mulheres. Afinal, a cultura machista também incentiva que uma detone a outra:
Somos instigadas a competir umas com as outras porque aprendemos que só vamos ser válidas se tivermos um marido. Lá atrás era assim que as mulheres sobreviviam, porque elas não tinham direitos, e a cidadania vinha sempre através de um homem. Hoje a realidade é diferente, mas não mudamos culturalmente e por isso as histórias permanecem.
Não dá para culpar o público por gostar de histórias que consolam, que dão sentido a um mundo com mudanças tão velozes que sequer poderiam ser imaginadas décadas atrás. As pessoas precisam se dar conta do problema para, a partir de então, partirem num "esforço consciente e constante de desconstrução e construção de um novo repertório".
Se passamos a vida absorvendo de diversas formas a informação de que homens são inocentes manipulados como Adão e mulheres são vis e manipuladoras como Eva, ver isso retratado em uma novela produz um reconhecimento quase inconsciente que torna aquela narrativa familiar e, por isso, atraente. É difícil sair desse ciclo quando não temos novas vozes para propor novas histórias.
E aí está o cerne da questão. O mercado audiovisual ainda é bem fechado, especialmente em relação às novelas da Globo. E como contar novas histórias se elas são escritas por pessoas que partilham de um mesmo lugar na sociedade, com as mesmas visões de mundo?
Em outros formatos, nos quais há um acesso maior de outras vozes, o padrão de vilã vil e manipuladora não é tão repetido. As minisséries, por exemplo, bem menos dependentes da aceitação do público que uma novela, contam com um número bem menor de vilãs.
Enquanto 73% das novelas das nove tinham mulheres como o centro da maldade entre os anos de 2000 e 2009, apenas 5,26% das minisséries da mesma emissora tinham vilãs. Nessas obras, consideradas mais "bem acabadas", o mal fica no encargo de personagens masculinos, ou não há uma definição clara de bem e mal.
"Isso se dá por diversos motivos, mas o que podemos dizer de modo mais simples é que o melodrama, uma matriz cultural fundamental da teledramaturgia, é mais "tonalizado", mais "hibridizado" nas minisséries e mais marcado, mais evidente nas telenovelas. Assim, as novelas vão apresentar uma narrativa mais polarizada, com definições claras de bem e mal, enquanto isso não é tão evidente nas minisséries", define Larissa.
Claro, há outros fatores envolvidos nisso. O público das minisséries, bem mais restrito, talvez seja composto justamente por quem quer evitar os lugares-comuns e se abrir para formas questionadores de arte. A novela é um caso diferente. O autor não pode questionar toda uma estrutura cultural num tipo de obra que depende da aprovação do Brasil inteiro, uma sociedade imensa e variada, com pessoas abertas a novas questões ou não. O ibope está aí, e os novelistas precisam se atentar a ele.
Apesar de todas as diferenças regionais e sociais do Brasil, contudo, uma característica foi sendo implantada nas novelas e conquistando, pouco a pouco, todo o público brasileiro: o protagonismo justamente da vilã. Sim, ela é a megera pintada por uma cultura machista, mas é quem chama a atenção na novela, gera identificação e vira estrela. Muito mais que as recatadas e conformadas mocinhas. Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), de Senhora do Destino (2006), e Carminha (Adriana Esteves), de Avenida Brasil (2012), que o digam.
A icônica Carminha, de Avenida Brasil (2012)
"Buscar entender esse protagonismo e esse mal encarnado em personagens femininos nos leva para fora da tela, claro. Especialmente no Brasil onde a telenovela é quase uma mimetização da vida vivida, uma crônica de nossas experiências rotineiras. É uma característica única e identitária da telenovela brasileira, inclusive", diz Larissa Rocha, doutora em Comunicação Social.
As megeras continuaram ali, mas o protagonismo das vilãs --ambiciosas, fortes, independentes-- fizeram ao menos os autores questionarem as mocinhas. Houve um avanço muito positivo nas últimas décadas, em que as protagonistas deixaram de ser submissas e dependentes para serem mais fortes, racionais e decididas. A emissora sequer usa o termo mocinha para suas personagens.
É uma clara evidência que, mesmo que a passos lentos, as coisas estão avançando no Brasil como um todo. Quem sabe no futuro, a rivalidade feminina, a dicotomia mocinha submissa versus vilã surtada e a presença massacrante de mulheres como vilãs seja amenizada.
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