Vana Medeiros
Ursula Coyote/AMC
O ator Bryan Cranston em cena do último episódio de Breaking Bad, exibido ontem nos EUA
VANA MEDEIROS, Especial para o NTV
Publicado em 30/9/2013 - 13h50
Atualizado em 30/9/2013 - 14h10
Desde o início, o criador Vince Gilligan sabia muito bem que história queria contar. Foram cinco temporadas para acompanhar a jornada que levou um professor de química do colegial na cidade de Albuquerque, Novo México, a um dos mais poderosos traficantes dos Estados Unidos. De Mr. Chips a Scarface, como Gilligan definiu no momento de vender sua série para o canal AMC. De Mr. White a Heinsenberg. E, por fim, a todos nós.
Em 2008, Gilligan começou a escrever a história de um homem que, ameaçado pela morte, decide investir em seus talentos para a química e se tornar produtor de drogas a fim de deixar sua família _uma esposa grávida e um filho com deficiência mental_ com dinheiro suficientes para sobreviverem a ele. Ou quase isso.
O conflito externo de Walter serviu apenas para mascarar um processo muito mais intrínseco de sua personalidade: O que acontece quando um homem de meia idade, em uma crise existencial perto da morte, se descobre desesperado para encontrar algum sentido em sua vida?
A luta de Walter não é com a lei, não é com a polícia de Albuquerque, é muito menos com Hank, seu cunhado policial que, em mais um conjunto de cenas magistralmente engendradas por Gilligan, desvela a identidade de Heisenberg, pouco antes de sofrer as consequências. Walter tem um inimigo muito mais importante para lidar: não só a morte, mas a consciência de um mundo sem ele, a iminência do esquecimento, de uma vida passada em branco.
Questões fundamentais presentes desde os primórdios da ficção mundial _a vida e a morte_ são ressignificadas e aprofundadas, para que a trama passe a discutir a finitude da experiência humana, e de todas as relações que temos com essa ciência do fim.
Muito mais do que as dúvidas externas a nós (como em que estado vou deixar minha família), Breaking Bad trata dos processos que se iniciam dentro de cada um no momento de consciência do fim. Walter quer, sim, dar uma vida digna a sua família. Ele os ama. Mas em paralelo a isso alimenta um desespero frente a sua própria mediocridade. Ele é Walter, apenas Walter, sempre será Walter, e a vida há de ser mais do que isso. No caso dele, custe o que custar.
Breaking Bad leva assim a trama televisiva a outro nível. Não estamos mais diante apenas do processo de vilanização de um herói, mas da investigação das causas mais profundas que o leva a isso. E, mais importante, fazendo uso de uma honestidade extraordinária com o telespectador. Afinal de contas, é preciso muita coragem para levar ao horário nobre norte-americano uma série cujo protagonista trata de uma a questão que não é sobre as leis deste mundo.
Muito se discute sobre a moralidade da trama, e a ideia de que, no universo de Walter White, o bem é recompensado e o mal é punido. Mas ignora-se com esta análise que Walter está mais para uma criatura amoral do que imoral. Ele reconhece a existência do Bem e do Mal, aprende e se apropria desses conceitos, apenas para ignorá-los sumariamente, já que eles não o servem mais. A luta de Walter é com questões muito mais importantes do que isso. Não é sobre os meios, é sobre o seu fim.
E a derrocada de Walter é vertiginosa. Gilligan assume gloriosamente a missão de, com o ritmo de um maestro, controlar esses passos, segurar as rédeas desta jornada, e puxar o telespectador pela mão para acompanhar cada movimento da confecção de Heisenberg. Com sua mão extremamente habilidosa de storyteller, o objetivo aqui é ultrapassar o didatismo.
Séries como The Sopranos e The Wire já haviam contados histórias de anti-heróis, daquelas que prosseguem no mesmo caminho _uma investigação sobre os processos que fazem do Mal o que ele é. Breaking Bad, no entanto, nos joga dentro dessa máquina com Walter, ao ampliar e retumbar tantas questões doloridas e problemáticas para ele, tanto quanto para nós. Na medida em que Walter cai, nos perguntamos se não faríamos o mesmo. Diante de um inimigo tão potente como o esquecimento, tão complexo como os limites da nossa experiência, não nos transformaríamos nós mesmos em Heinsenbergs?
O brilhante último episódio, exibido nos Estados Unidos no último domingo (29), aponta para o sim. Antes de se lançar para uma última missão de vingança, para acertar as questões não resolvidas que tem com Jack e sua gangue, Walter volta para casa. Visita Skyler. Pede mais cinco minutos com sua filha bebê, que dorme no berço, no quarto ao lado. Vê de longe, através de uma janela suja e embaçada, o filho que o odeia voltar para casa. Ele acabou. Antes de morrer, Walter já chegou ao fim. Sabendo disso, ele livra Skyler de sua resposabilidade. Não foi pela família. “Eu fiz isso por mim. Eu gostei. Eu era bom nisso. Eu estava mesmo… Eu estava vivo”. Estava. Não está mais.
Por um momento, ele pôde se afastar da mediocridade de seu mundo para ser aquele que bate à porta. Mas sem esquecer o grande motivo disso tudo: o mundo inevitavelmente bate de volta. Vá em paz, Walter.
VANA MEDEIROSé jornalista especializada em séries de TV há sete dos seus 26 anos. Ex-editora do Estrelando Séries, atualmente escreve para seu site, o Temporada de Séries, e para a Revista Monet. É uma nerd apaixonada por séries de TV que, nas horas vagas e para se distrair, lê ensaios acadêmicos sobre Six Feet Under. Dramaturga e roteirista, vive mais no mundo da ficção do que neste aqui. Visite: http://temporadadeseries.com.br/
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