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1958

Garota do Momento abusa de 'ano da esperança', mas escancara desigualdades

FOTOS: REPRODUÇÃO/TV GLOBO

Duda Santos caracterizada como Beatriz; ela sorri em cena de Garota do Momento

Duda Santos como Beatriz em cena de Garota do Momento; novela se passa na década de 1950

SABRINA CASTRO

sabrina@noticiasdatv.com

Publicado em 24/11/2024 - 8h10

O ano de 1958, no qual se passa a novela Garota do Momento, foi marcado principalmente pelo otimismo. O Brasil como um todo se alegrou com a conquista da primeira Copa do Mundo, a primeira do país --que ainda colocou Pelé (1940-2022) como ídolo do futebol. A construção da nova capital, Brasília, estava a todo vapor; e havia esperança de que o então presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) conseguisse de fato cumprir a meta de impulsionar o desenvolvimento econômico e industrial do país em cinco anos.

A criação da bossa nova, que misturava o samba carioca com o jazz americano, embalava os principais bailes com João Gilberto (1931-2019). O rock e o samba, tão presentes na novela, também enlouqueciam a juventude.

A televisão, contudo, ainda estava começando a se popularizar. O custo alto impedia que boa parte da população tivesse acesso ao aparelho, e, por isso, os principais jogos da Seleção Brasileira no Mundial foram transmitidos nos cinemas --e com alguns dias de atraso. Muita gente ouviu os cinco gritos de "gol do Brasil" que marcaram a vitória contra Suécia na final pelo rádio.

Foi justamente por causa desse clima que Alessandra Poggi escolheu 1958 para dar o tom de sua novela. Até então, ela só sabia que queria ambientar a novela na década de 1950.

A diretora artística da trama, Natalia Grimberg, concordou com a escolha: "Era realmente um ano em que dava tudo certo. Tinha um sonho no Brasil. A Copa, a bossa nova, Brasília... Então, para a gente, esse sonho continuou. Acho que esse horário das seis fala muito sobre essa coisa de o público sonhar e sonhar muito. Por isso, usamos a conexão de fábula de esperança", disse ela, em coletiva de imprensa.

O fato de a novela apostar no clima leve e alegre da época, contudo, não faz ela virar as costas para as intrincadas desigualdades da época. Até agora, em sua terceira semana, a trama já fez menções ao racismo e ao machismo que dominavam a década.

Mulheres sem direitos

Várias tramas exemplificam uma sociedade que colocava sempre as lugares no papel "do lar" --como o fato de Anita (Maria Flor) ser submissa a Nelson (Felipe Abib), ou de Marlene (Ana Flavia Cavalcanti) não conseguir uma vaga no laboratório da Perfumaria Carioca apenas por ser mulher. Lígia (Palomma Duarte) também sofre pressão constante por ter se afastado da família para seguir o sonho de ser cantora.

Além disso, a novela já mencionou duas leis que vigoravam e mostravam o pensamento dominante na época. A primeira envolve a questão do divórcio, impossível até então --a Lei do Divórcio (6.515/1977), que inseriu a possibilidade de dissolução oficial do casamento no ordenamento jurídico, só foi sancionada em 26 de setembro de 1977. Na época da novela, só existia o desquite, que encerrava a sociedade conjugal, com a separação de corpos e de bens, mas não extinguia o vínculo matrimonial.

As mulheres desquitadas, bem como os filhos dela, costumavam sofrer muito preconceito. E de forma institucional: Raimundo (Danton Mello) já afirmou que também não formalizou sua separação de Lígia porque os filhos poderiam sofrer até para conseguirem ser matriculados em boas escolas.

A situação seria ainda pior se os desquitados arranjassem outro cônjuge. A união não teria respaldo legal, e os filhos seriam considerados ilegítimos --como os gerados em relacionamentos extraconjugais da época.

Ligia (Palomma Duarte) em Garota do Momento

Ligia (Palomma Duarte) em Garota do Momento

O Brasil acabou sendo um dos últimos países do mundo a instituir o divórcio. Para se ter uma ideia, dos 133 Estados integrantes das Nações Unidas na época, apenas outros cinco ainda não o permitiam. Zélia (Leticia Colin) chegou até a dizer que se casou no Uruguai porque o local já tinha a lei do divórcio --resguardo que, claro, só as classes mais altas poderiam custear. 

Outro fator marcante para a trajetória das mulheres na época foi mencionado por Maristela (Lilia Cabral) logo nos primeiros capítulos da trama: mulheres casadas só podiam abrir uma conta bancária com a permissão do marido. Elas só passaram a abrir contas bancárias e a ter um CPF próprio a partir de 1962, com a promulgação do Estatuto das Mulheres Casadas.

O Código Civil de 1916, que vigorava antes, ainda impedia mulheres casadas de terem estabelecimento comercial ou mesmo viajarem sem a autorização dos maridos. Elas também só podiam trabalhar fora se o marido permitisse --e a autorização poderia ser revogada a qualquer momento. O fato ainda deve resvalar na trama, já que Anita conseguirá um emprego no Alfredo Honório Show sem a aprovação do marido.

Lei Afonso Arinos

A luta contra o racismo também movimentou o enredo da novela até aqui, com o protesto de Beatriz (Duda Santos) ao fato de Juliano (Fabio Assunção) acusá-la de roubar um sabonete da Perfumaria Carioca. Revoltada, ela citou a lei Afonso Arinos em um discurso.

"Podem fotografar, podem publicar, porque o que aconteceu aqui hoje é mais um exemplo de como nós, negros, somos tratados por essa sociedade preconceituosa. E é uma vergonha que a Justiça não faça valer a Lei Afonso Arinos, porque, se fizesse, esse homem estaria preso, está na lei. Racista! Eu tenho ódio de gente feito você", se queixou a moça para os jornalistas que cobriam a inauguração de uma loja da rede.

A própria Beatriz não usou a lei, apesar de ter conseguido fazer o criminoso ser punido de outras formas. Clubes de pessoas negras e jornais que circulavam para esse público instituíram um boicote à loja, que viu 30% das suas vendas caírem de um dia para o outro. O mandachuva vai contratar a mocinha como garota-propaganda, numa tentativa de reverter a situação. 

De fato, a Lei Afonso Arinos (1905-1990) não teria tantos impactos --afinal, via o racismo como contravenção e não como crime. Batizada em homenagem a um deputado branco, que redigiu a lei após presenciar um caso de racismo sofrido pelo seu motorista, foi o primeiro código brasileiro a incluir entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça. 

A impressão geral, porém, é de que ela não funcionaria. Não à toa, a primeira a usá-la na vida real foi a repórter Gloria Maria, após ser impedida de entrar em um hotel por causa de sua cor de pele. O episódio com a jornalista aconteceu em 1970 --19 anos depois da promulgação da lei. 

A Afonso Arinos, contudo, tipificava o racismo de forma bem restrita. Em seus artigos, seria penalizada apenas "a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor". A maior pena era a de prisão simples de três meses a um ano e multa de Cr$ 5.000 (5 mil cruzeiros) a Cr$ 20.000 (20 mil cruzeiros).

Leia também -> Resumo dos próximos capítulos da novela Garota do Momento.

Garota do Momento é escrita por Alessandra Poggi, com colaboração de Adriana Chevalier, Aline Garbati, Mariani Ferreira, Pedro Alvarenga e Rita Lemgruber. A direção artística é de Natalia Grimberg, e a direção-geral de Jeferson De.


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