BARBITÚRICOS
REPRODUÇÃO/TV GLOBO e DOMÍNIO PÚBLICO
Clarice (Carol Castro) em cena de Garota do Momento, e Marilyn Monroe na década de 1950
Clarice (Carol Castro) não tem lembrança de detalhe algum de seu passado durante 71 capítulos de Garota do Momento, e tudo por causa de uma simples pílula. O remédio foi receitado pelo misterioso doutor Pimenta, que se aliou aos vilões para assegurar que a protagonista não se recorde de um crime cometido por Juliano (Fabio Assunção). Mas uma substância é capaz de tanto poder? A resposta é sim. E um remédio desta safra chegou a ser responsável pela morte da diva de Hollywood Marilyn Monroe (1926-1962).
O Notícias da TV entrevistou Patricia Mastroianni, professora do departamento de Fármacos e Medicamentos da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Ela cruzou dados referentes à época da novela, ao potencial dos fármacos e ao tipo de amnésia apresentado pela personagem da trama para definir a substância mais provável. Clarice esqueceu seu passado após ser atropelada por um bonde, e o remédio que toma tem impedido que ela se lembre do que aconteceu antes do acidente.
Á época, os principais remédios que têm a confusão mental como efeito colateral eram os da classe dos barbitúricos --o fenobarbital (Gardenal) é o mais conhecido deles, e também o primeiro a ser criado, em 1912. Eles foram amplamente utilizados para tratar insônia, ansiedade e epilepsia até 1960, quando perderam espaço para os benzodiazepínicos --classe de Alprazolam, Clonazepam e Diazepam.
A substituição se deu pelos riscos desses medicamentos, que podiam causar sedação e até morte em altas dosagens. Foi o caso de Marilyn Monroe, que morreu em 1962 devido a uma overdose de barbitúrico. A análise toxicológica fala em 4,5 mg de pentobarbital no sangue da atriz, além de 13 mg no fígado. Ela, que sofria de insônia crônica e ansiedade, usava barbitúricos e anfetaminas para controlar esses sintomas. Com o tempo, a atriz criou dependência ao fármaco e passou a exagerar na dose.
Ainda hoje, os barbitúricos são usados em contexto de anestesia endovenosa ou de tratamento de epilepsia. Mas a diminuição do consumo foi brusca especialmente porque, no século passado, a substância costumava ser encontrada até em remédios para dor de cabeça.
Um panfleto do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), menciona que os antigos Cibalena, Veramon, Optalidom e Fiorinal continham barbitúricos em sua fórmula. Mas os laboratórios farmacêuticos reviram seus produtos após os relatos de uso abusivo e prejudicial desses medicamentos.
Ou seja: Juliano poderia dar um analgésico que tratasse as enxaquecas de Clarice e também a impedisse de recuperar a memória. A coitada, no entanto, acabou com uma fórmula que ainda lhe provoca dores terríveis.
Os barbitúricos não são os únicos remédios que prejudicam essa "função" do cérebro. Mesmo os benzodiazepínicos, tão usados atualmente (a especialista chega a falar em uma "superprescrição"), têm influência direta nas lembranças. "Esse grupo de medicamentos dá amnésia mesmo, um prejuízo cognitivo e de memória", afirma ela.
O mesmo acontece com os medicamentos Z (Zolpidem, Zopiclona e Zaleplona, entre outros), criados no fim da década de 1980. "Eles são classificados pela vigilância sanitária como classe B1, cujo efeito adverso é o prejuízo à memória", arremata.
Todos esses medicamentos também são relacionados à tolerância e à dependência. Aliás, as dores de cabeça de Clarice podem ter a ver com isso. Embora a novela use as enxaquecas como recurso narrativo, uma vez que elas aparecem sempre que a personagem está diante de algo que possa fazê-la se lembrar do passado, sintomas como esse estão ligados à síndrome de abstinência. "O corpo busca manter o nível plasmático daquela substância", explica a farmacêutica.
Essas três classes de medicamentos têm um funcionamento parecido, baseada na depressão do Sistema Nervoso Central (SNC). De maneira geral, as substâncias do remédio se ligam aos receptores Gaba, o principal neurotransmissor inibitório do SNC. Um processo químico ocorre, impedindo os neurônios de dispararem sinais de estresse, ansiedade e excitação.
O problema é que eles também podem acabar inibindo a atividade neuronal no hipocampo e no córtex pré-frontal, áreas do cérebro envolvidas na conversão de informações de curto prazo em memórias de longo prazo. É a chamada amnésia anterógrada --isto é, ela só é válida enquanto o medicamento está ativo. Claro que, com o uso prolongado, podem ocorrer danos irreversíveis.
De acordo com a especialista, o barbitúricos também agem indiretamente na transmissão neuronal colinérgica, um processo de comunicação entre os neurônios que afetam funções cognitivas e autômatas. O mal de Alzheimer, inclusive, vem daí. Ele nada mais é que a "neurodegeneração e o enfraquecimento dos neurônios que produzem as fendas sinápticas para transmitirem sinais e reforçarem a memória", como define a especialista.
Em situações mais graves, como a de Marilyn Monroe, os medicamentos podem deprimir a atividade neural na área do bulbo cerebral --que levam a efeitos como diminuição da frequência respiratória e cardíaca.
O caso de Clarice, porém, tem muito mais relação com o funcionamento anormal do hipocampo, que impede que ela recupere as memórias mascaradas pelo trauma. Mas, claro, há um fator ficcional nisso tudo. Patricia explica que, na vida real, a possibilidade de a artista ter flashbacks mais estruturados de seu passado --para além de uma canção e de um jardim de flores-- é bem alta.
Com a revelação de que Beatriz (Duda Santos) é filha dela, as coisas devem mudar. E a protagonista só precisa deixar a medicação de lado para ter acesso a um mundo de lembranças.
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