Crítica
Reprodução/TV Globo
Tarcísio Meira em Velho Chico; coronel lembra personagem de Gabriel García Márquez
CARLOS AMORIM
Publicado em 15/3/2016 - 8h20
Alguma coisa em mim aplaudiu o capítulo de abertura da nova novela das nove da Globo. Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa, ficou como um grito parado no ar. Neste país culturalmente empobrecido, "funkizado" e inconsequente, voltamos aos conflitos e belezas dos anos 1960. Aqueles anos de um espetacular desabrochar da cultura brasileira. Na música, no teatro, no cinema, na literatura, nas artes em geral. A direção impecável de Luiz Fernando Carvalho (nascido justamente em 1960), a luz impressionante, a tomada das câmeras, tudo para calar qualquer imbecilidade do tipo "televisão só faz porcaria". Mentira! Hoje, a televisão mundial exibe o melhor da cinematografia, como já disse o mestre Martin Scorsese.
Já gostava de Rodrigo Santoro no cinema. Mas ver Carol Castro, sempre tão dispensável, num papel dramático, como uma Gal Costa tropicalista e enfurecida, me saltou aos olhos. Sim, podemos produzir algo de tal força, tamanho e beleza cênica na TV. Ufa! E ver Tarcísio Meira no papel de um personagem de Gabriel García Márquez, como o patriarca de Macondo, a cidade imaginária do colombiano ganhador do Nobel de Literatura (1982) foi demais. Um Tarcísio Meira em terno de linho branco e amassado, na pele de um coronel do velho Brasil rural, com um frango no braço esquerdo, balbuciando (e morrendo espetacularmente, como um dom Corleone), foi a nota clássica dessa produção que há de nos resgatar. A todos nós, que dedicamos a vida à telinha.
Note-se: o trabalho com as lentes, nas paisagens impressionantes do Velho Chico, o chamado rio da integração nacional, que corta cinco Estados do país; o plano corretíssimo nos closes, nas tomadas em formato do cinema americano (meia tela); o vazar da luz nos contraplanos e nos travellings, quando a câmera escorre lentamente sobre a imagem. Tudo isso me encheu de uma alegria sessentista. Afinal, podemos escapar à porcaria habitual das novelas dentro de estúdios refrigerados. No caso, dava até para ver o suor natural, tropical, brasileiro.
Tomara que essa peça (e digo peça na ausência de uma palavra mais definitiva) continue ao longo dos demais capítulos. E que a emissora tenha juízo suficiente para não arrastar a trama por centenas de episódios inúteis na forma e no conteúdo, atendo-se ao presente que nos dá com o Velho Chico. A produção, que envolve um número inacreditável de profissionais (técnicos, atores, figurantes, o pessoal da retaguarda, o autor, etc.) e um custo astronômico, deve ser considerada como uma joia rara. Algo que a Globo não fazia há tempos. Que reflete o seu padrão de qualidade, sempre à frente dos concorrentes. Mas que pode se perder na luta insana pelos números da audiência.
Por favor, diretores platinados, uma vez que seja, pensem no cara diante da telinha. Nós, o público. Merecemos uma obra dessa qualidade. Estamos esperando por isso. Estamos cansados da trama barata, das favelas cenográficas que não existem, dos amores vulgares. Queremos justamente o que vocês nos ofereceram no primeiro capítulo de o Velho Chico. Um Brasil de verdade. Ambientado em um tempo atemporal (e já esquecido), quando nos debatíamos entre dois brasis: um moderno querendo acordar e outro feudal, resquício do colonialismo e da escravidão, coisa que durou séculos na terra tupiniquim.
Uma vez que seja, nos concedam esse raro prazer!
CARLOS AMORIMé jornalista. Trabalhou na Globo, SBT, Manchete, SBT e Record. Ocupou cargos de chefias em quase todos os telejornais da Globo. Foi diretor-geral do Fantástico. Implantou o Domingo Espetacular (Record) e escreveu, produziu e dirigiu 56 teledocumentários. Ganhou o prêmio Jabuti pelo livro-reportagem Comando Vermelho - A História Secreta do Crime Organizado. É autor de CV_PCC - A Irmandade do Crime e O Assalto ao Poder. Criou a série 9mm: São Paulo, da Fox.
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