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Depoimento

'Conheci Jorge Fernando da pior maneira: com uma bronca, mas ele logo se revelou'

Reprodução/Instagram

Jorge Fernando morreu na noite deste domingo (27), aos 64 anos, após uma parada cardíaca - Reprodução/Instagram

Jorge Fernando morreu na noite deste domingo (27), aos 64 anos, após uma parada cardíaca

RAPHAEL SCIRE

raphascire@gmail.com

Publicado em 28/10/2019 - 10h58

Conheci pessoalmente Jorge Fernando na festa de lançamento da novela Ti Ti Ti, dirigida por ele em 2010. Eu tinha só 21 anos e uma ideia fixa na cabeça: escrever a biografia de Silvio de Abreu, parceiro de Jorginho, como ele era conhecido no meio artístico, em várias empreitadas. Nosso primeiro contato foi da pior maneira possível: levei um esporro do diretor, atarefado entre a imprensa e tantos convidados da festa.

Minha aproximação, confesso, foi completamente equivocada, cometi um erro primário para qualquer jornalista: comecei a conversa me desculpando pelo incômodo e dizendo não saber se era a hora de pedir a ele um favor. Jorge Fernando nem esperou eu terminar a fala e foi logo gritando: "Não, não é a hora". Eu só desejei naquele instante um buraco onde eu pudesse me enfiar.

Além da vergonha, a negativa de Jorge Fernando colocaria em risco meu livro. Seria impossível falar de Silvio de Abreu sem contar com um depoimento de seu parceiro mais longevo --ao todo, fizeram juntos oito novelas.

Fui atropelado por uma legião de fotógrafos e figurantes querendo espaço na trama que estava prestes a estrear. Ouvi uma mulher dizer que adorava encontrá-lo em festa de novela pois só assim conseguia ver Jorginho vestindo calças. As bermudas, de fato, eram seu uniforme de trabalho, despojado, tal qual as produções que dirigia.

Ainda na festa, engoli o susto inicial e voltei a procurá-lo. Eu não tinha mais nada a perder e soltei o pedido de entrevista, explicando o meu projeto. Do nada, Jorge Fernando se tornou outra pessoa, aquela que verdadeiramente era: abriu um sorriso, pegou meu celular e anotou ele próprio seu endereço de e-mail.

Meses depois, eu entrava em sua sala nos Estúdios Globo, repleta de estátuas de São Jorge, seu santo protetor. A camiseta que ele usava também trazia estampada a imagem do Santo Guerreiro. As gravações de Ti Ti Ti já haviam se encerrado, e ele se preparava para dar início à produção de Dercy de Verdade (2012), minissérie escrita por Maria Adelaide Amaral. A autora sabia que só Jorginho, com seu humor peculiar, poderia contar a história de Dercy Gonçalves. Não estava errada.

Na ocasião, passamos em revista todas as novelas que fez com Abreu. Juntos, foram responsáveis por decretar a comédia como ponto primordial na faixa das sete, com Guerra dos Sexos (1983).

E foi da boca do próprio Silvio que ouvi o relato sobre quando Jorginho contou para a mãe que era gay. A atriz Hilda Rebello, figura sempre presente nas tramas que dirigia, ouviu a confissão do filho com naturalidade. Espantado com a reação da mãe, Jorginho perguntou a ela: "Mas a senhora não vai falar nada?". "Não", respondeu ela. "Ah, então tá bom, vamos tomar sorvete", disse ele.

É na anedota da vida privada que encontramos a chave para entender o estilo de direção de Jorge Fernando. O sorvete, de certa forma, aparece sempre metaforicamente em suas novelas, com a alegria, a movimentação desenfreada e ainda um quê de infantil que sua direção trazia.

Marco na televisão

No final dos anos 1970, Jorge já aparecia na televisão como ator. Seus olhos azuis, impactantes, certamente logo o alçariam ao papel de galã, mas foi atrás das câmeras que ele se encontrou de verdade. Junto com Guel Arraes, chamou a atenção de Silvio de Abreu quando dirigiam Jogo da Vida (1980), o carimbo no passaporte para explorar de vez a comédia pastelão de Guerra dos Sexos, a trama seguinte e marco na televisão.

A partir de então, Jorge Fernando escreveu a história do horário, com tramas tão importantes quanto, como Vereda Tropical (1984), Cambalacho (1986), Brega e Chique (1987), Que Rei Sou Eu (1989) e Vamp (1991).

Foi também com Silvio de Abreu que o diretor se aventurou pelo horário mais nobre da Globo. Rainha da Sucata (1990) pretendia seriedade, mas guardava os traços da anarquia e do humor da dupla. A Próxima Vítima (1995), como ele mesmo reconhecia, tornou sua direção "mais sofisticada", condizente com o suspense que a trama pedia.

Durante as gravações de Ti Ti Ti, numa participação especial de Silvio como ele mesmo, Jorge Fernando gritou para sua equipe tratá-lo bem, sob pena de nunca mais dirigir novela das nove.

A carreira de Jorge Fernando, entretanto, não esteve imune a fracassos, como Vira Lata (1996), de Carlos Lombardi, e Zazá (1997), de Lauro César Muniz, autores cujos textos eram bastante discrepantes em relação à direção.

Com Silvio de Abreu também amargou tropeços, como a mal compreendida As Filhas da Mãe (2001), uma novela que tinha todos os ingredientes da dupla, mas derrapou na recepção do público. Doze anos depois, se reencontraram no remake de Guerra dos Sexos (2013), outro balde de água fria na carreira deles.

Carioquíssimo, com sotaque chiado e jeito praieiro, Jorge Fernando colecionou sucessos com novelas ambientadas em São Paulo. Outro autor muito presente em sua carreira foi Walcyr Carrasco, com quem também aprendeu a conhecer a maior cidade brasileira, como ele próprio me relatou. Juntos, fizeram grandes sucessos do horário das seis, como Chocolate com Pimenta (2003), Alma Gêmea (2005) e, mais recentemente, Eta Mundo Bom! (2016).

Seu último trabalho foi Verão 90, encerrada em julho deste ano. Apesar das limitações orçamentárias da trama e das críticas que sofreu na imprensa --minhas, inclusive-- a novela foi sucesso de público graças, em grande parte, à direção frenética, ingênua e colorida de Jorge Fernando.

Hoje de manhã, quando soube de sua morte, aos 64 anos, me recordei imediatamente da primeira frase que ouvi, aos berros, diretamente de sua boca: não, não era hora.


RAPHAEL SCIRE é jornalista e roteirista e escreve críticas de novelas aos sábados no Notícias da TV.

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